domingo, 9 de agosto de 2009

Raúl Solnado e a Guerra.

Eu era ainda recém-chegado a este mundo e de vez em quando o meu pai cruzava-se com alguém conhecido que ainda não me tinha visto. "Este é o meu rapaz!" e eu estava apresentado. “ Mostra quantos anos tens!” e eu esticava a mão com alguns dedos a apontar para o ar. Os comentários de volta lá vinham: se era parecido com o meu pai ou com a minha mãe, se comia pouco ou se comia fiado...um comentário meio entre dentes era comum. “Isto agora está mau para rapazes, mas como ainda faltam tantos anos pode ser que se safe…Oxalá que sim!”,”Será o que Deus quiser!” respondia o meu pai. Naquele tempo, ou pelo menos na minha casa, escasseavam os brinquedos e os livros de histórias. Não havia televisão. Só na rádio e apenas ao sábado, pelo fim da tarde era contada uma história infantil que durava no máximo 5 minutos. Eu não perdia esse momento. Depois à hora do almoço havia “Os Parodiantes de Lisboa” que eu não compreendia bem mas que eram cómicos pelas vozes engraçadas que tinham e pelos ruídos estranhos que faziam. Depois havia a história da guerra do Raul Solnado. As nuvens da guerra pairavam sobre mim, sem que a palavra guerra fosse dita. Dizia-se ir para a Tropa, ir para o Ultramar, ir para a Guiné ou ir para Angola, ou ir para Moçambique. Alguns dos rapazes da mercearia que havia no rés-do-chão, antes de irem para África tinham vindo mostrar o saco para a viagem. Era um saco plástico do meu tamanho. Era para levar para o barco e tinha de durar. Era a comida para 12 dias. Continha biscoitos grossos, latas de conserva diferentes das latas de sardinha, uma garrafa de bebida fina e muitas outras coisas. Intrigaram-me umas cápsulas moles como borracha parecidas com feijões castanhos chamadas vitaminas. O Adérito tirou uma para eu provar. “Toma faz-te bem!... faz-te crescer mais depressa, e forte… anda que é para vires comigo matar turras.” O David não abriu o seu saco e reprovou fisicamente o Adérito puxando-o e levando-o pelo braço quando este fingindo não mostrar, mostrou às minhas tias e também a mim um pequeno livro com muitas fotografias em que se viam pedaços de corpos escuros espalhados no chão e espetados em paus. A guerra era-me anunciada assim sem que eu soubesse quem me estavam anunciando. Para mim a guerra era uma história contada pelo Raul Solnado em que as balas se atavam com um fio para depois se poderem utilizar de novo como se fossem parte das peças de um brinquedo de criança. O David tem hoje uma mercearia à beira do rio Paiva, ao Adérito nunca mais o vi desde o dia em que partilhou comigo a vitamina do crescimento rápido. Apesar de ter prometido falhei a despedida no cais de embarque. A barreira policial impedia a aproximação de crianças menores de doze anos. A multidão compacta impediu-me sequer de ver o navio e os soldados que partiam. Eu fui dos rapazes com sorte e safei-me aos doze anos, com o 25 de Abril de 1974. As Guerras do Ultramar porém continuam hoje nos seus sobreviventes e nos que guardam as ausências dos que não voltaram.

1 comentário:

Lilazdavioleta disse...

E mesmo regressados , há os que se procuram e os que os procuram .

Maria