sábado, 30 de novembro de 2019

A violência de novo se abate sobre a América Latina. Aqui se relembra o massacre que ocorreu no Chile em Santa Maria de Iquique no ano de 1907.




Faz agora 112 anos, a 21 de Dezembro que no Chile, em Santa Maria de Iquique houve um massacre de operários. 
Mataram milhares. 
Seguramente mais de 2200, certas fontes dizem que chegaram a 3600 os trabalhadores mortos. 
Eram de várias nacionalidades: bolivianos, peruanos... 
Eram de todas as profissões que se empregavam na indústria do salitre. 
Alguns ali tinham acorrido para apoiar a greve dos mineiros numa luta que durou por todo o mês de Dezembro. 

Um grupo chileno chamado Quilapayún pelo ano de 1970 gravou uma Obra Prima de Luis Advis Vitaglich, em forma de Cantata com a mesma dimensão da Misa Criolla de Ariel Ramirez ou das Cantatas de Bach. 
Esta Cantata à maneira de Bach e de Ramirez é ancorada na música de tradição folclórica e traz para a vida quotidiana a memória de episódios históricos traumáticos. 
Neste caso são recordados os acontecimentos de 1907, um tempo anterior de desgraça e miséria que em 1970 parecia ultrapassado. Contudo fatidicamente em 1973 de novo a violência e a crueldade se abateu sobre o povo chileno arranchando os verdugos que sempre se voluntariam para sacrificar vizinhos, amigos e até os próprios familiares.
Agora de novo a violência, a morte e o sofrimento se abate sobre a América Latina e nomeadamente sobre o Chile e a Bolívia.





sábado, 23 de novembro de 2019

HERBERTO HELDER

"Escrevi porque tinha um problema de ódio a resolver."                                                                                                            Herberto Helder



Ah este ódio com que amo a humanidade!
...e a necessidade dos livros onde ela se verte;
não, não é um problema de nervos, nem de ódio 
que me leva a escrever, mas sim a janela fechada,
as arestas dos varões quadrados da grade de ferro
cravadas na carne das mãos e da cara,
a visão periférica que mantém o medo na distância.

Não serás alguém grande, mas poderás sempre
escolher a fuga das alturas ou a fragilidade do papel
que embrulha o pão e se rompe com o lápis H
Serás fumo de chaminé no ar 
ou breu de mascarra sobre o cotim azul.


Não serás alguém grande, -disseram-me-
descolaram o remate do cartucho de meio quilo
e alisaram os vincos do papel grosso
entregaram-me as pontas de lápis 
a escaparem pequenas das mãos adultas grandes
e permitiram que desenhásse no lado de fora, 
sobre o riscado vermelho,
porque dentro pousava-se o peixe acabado de fritar
e o desenho esvaía-se na nódoa 
esmaecido pela gordura
para depois se perder com o jornal 
da forra do balde do lixo.

poderás sempre escolher a fuga das alturas 
ou a fragilidade do papel que embrulha o pão,
o papel que se rompe e se rompe com o lápis nº4
O que queres ser? Fumo de chaminé no ar? 
ou mascarra de breu sobre o cotim azul?

Então escrevi mas o que fazia eram desenhos
que gritavam histórias. 
pedia livros e que mos lessem
mas não havia livros porque os livros 
para nada servem.

Ah este ódio com que amo a humanidade!
e a necessidade dos livros onde ela se verte

                                                                                                  Em memória do HH






domingo, 17 de novembro de 2019

Nathalie Stutzmann - Gute Nacht - Winterreise - Schubert.

efémera

"Herdei" um telemóvel que permite desenhar no visor. Tal legado faz com que passe o tempo a olhar para a "tabuínha" coçando-a com o dedo, ora aqui ora ali.
O dedo é grande demais para qualquer linha fina mesmo quando se aumenta a escala da superfície onde se desenha.
As dificuldades encontradas ao desenhar sobre tudo e sobretudo desenhar, são inerentes ao risco de arriscar riscar e fazem parte de cada técnica.
 O desafio da superfície obriga à variedade do estilete. E friccionar como dedo uma superfície lisa, literalmente digitar, é bem mais fácil do que apunhalar um xisto à pedrada para gravar um cavalo.
De qualquer maneira não me posso queixar nem do meio nem da técnica quando vejo como resultaram os desenhos que David Hockney fez diáriamente no seu "Iphone". 
Ao alvorecer, porque os pintores vivem da luz e com a luz, David Hockney desenhou no seu telemóvel o quotidiano que o rodeava, por mais prosaicos que fossem os modelos. Depois para presentear os seus amigos enviava essas mensagens coloridas para eles como quem deseja Bom-dia:
A paisagem da janela; copos, canecas e jarras com flores; as pontas dos cigarros no cinzeiro, a última apagada ainda fumegando; o próprio Iphone carregando na tomada de electricidade... enfim a complexidade das coisas simples, o pormenor, o instante, o detalhe que rompe a monotonia.
Agora que cheguei a este meio tão efémero e virtual faço o meu aprendizado entre a surpresa e o espanto.

domingo, 3 de novembro de 2019

Telefonia.

Os de cima têm a telefonia ligada.


representação por si só

Não me interessa a representação por si só. Claro que quero reproduzir a partir do real, interessa-me a história, a palavra que faz a narrativa, contudo o objecto final escapa ao que lhe deu origem e vale por si só. Vale enquanto afirmação ainda que seja inicialmente uma tentativa de representação, uma cópia. Ele acaba por ser a representação do falhanço da tentativa de reprodução do modelo.
Interessam-me as falhas, as imperfeições, as fugas à representação, a traição que o cérebro faz ao olhar, a fuga que a mão faz ao cérebro. No fundo quando há um processo de construção de uma imagem, este processo só termina na percepção do receptor dessa imagem. No entendimento do receptor enquanto fruidor ou iconoclasta. Na sua retina, no seu ouvido, no seu olfacto, no seu estado de saúde e bem-estar, no seu cérebro, na sua mente, na sua cultura. Eu estou aí como primeiro interlocutor relativamente à imagem que descrevo, desenhando símbolos, recorrendo a ícones reconhecíveis da minha cultura e no meu tempo.

sábado, 2 de novembro de 2019

Como se fosse Abril (Lembrando Kaváfis)







Como se fosse Abril (Lembrando Kaváfis)

Felizmente vieram
os bárbaros
e com eles a morte
prematura e sem motivo
nada poderíamos oferecer,
aos bárbaros,
porque saber
demora tempo e os bárbaros
cultuam a morte em idade jovem.








Não festejo a morte! Nem os mortos. Festejo os vivos!


Não festejo a morte!
Nem os mortos.
Festejo os vivos!
Os meus mortos estão vivos:
na casa do café de onde trazia o lote de Timor,
no caminho para o fontanário,
naquele semáforo junto à estação de metro…
naquela esquina onde havia um velho guarda-freio
que com uma pesada bengala de aço mudava a agulha
para o carro-eléctrico seguir para a outra linha…
no pacote de bolachas da prateleira do supermercado.

Com os meus vivos brindo:
nos seus aniversários, no meu aniversário,
com vinho verde do palácio de Monção,
cozinho uma comida antiga,
penso em fazer arroz de forno,
como carne como só se deve comer nos dias especiais,
-e porque uma vez um naturista me disse que
era melhor comer se andava a ter sonhos recorrentes
em que a comia-

Muitas vezes viajo com eles, com os meus vivos,
no odor tinto da touriga nacional
ou no cheiro verde da relva acabada de aparar,
na côr âmbar de um copo de capilé
nos tons castanhos destes dias cinzentos
em que os demais festejam os seus mortos
e não entendem a alegria desses castanhos
que cítricos ou vermelhos são sempre solares.

Os mexicanos festejam os seus vivos nos cemitérios,
eu não frequento cemitérios
porque neles se sublima ainda mais
a desigualdade social
perante a irremediável justiça.

Sempre me desgostou que cortassem flores
e as sacrificassem nas jarras
ou nas lajes tumulares…

Não festejo a morte!
Nem os mortos.
Festejo os vivos!





sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Eram todos santos antes de serem finados.









































Os mexicanos festejam os seus mortos
nos cemitérios, com eles comem e bebem
e cantam e riem.
eu não frequento cemitérios
porque neles o absurdo e a violência
da desigualdade social
se sublimam e afirmam.  

Os mausoléus não fazem bem aos mortos
no entanto a vontade da continuidade da injustiça
perante o irremediável dá motivação aos vivos.

A antiga pira funerária
industrializou-se no crematório de hoje
tornou-se comum
é popular e breve
não deixa catarro.

Em breve não haverá mausoléus
As necrópoles serão museus
E uma outra espécie qualquer interrogar-se-á
Porque nos extinguimos em massa.