quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Texto escrito numa tabuínha de madeira antiga.

"Caminhámos longamente Atravessámos desertos Sabemos agora serem todos os lugares desertos Desertos de pedra Desertos de areia Desertos de água Mas o deserto que tememos por crescer mais rápido que todos os outros é o que faz secar o coração das pessoas Ajuda-nos Senhor e liberta-nos da estreiteza e da secura que cresce em nós."

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Menino Jesus, Mitra, Chanucá e o Solstício de Inverno.

Chegou o mais pequeno dia como se as trevas avassaladoras fossem tragar a luz e toda a criação. Todas as culturas que vivenciaram este fenómeno ao longo dos tempos foram construindo histórias para o explicar. A nossa matriz judaica comemora por esta altura o Chanucá, a festa das luzes. O que estão comemorando, entre outras tradições orais arcaicas é a vitória de Judas Macabeu à frente de um punhado de pastores na guerra de recuperação da cidade santa de Jerusalém contra os Sírios selêucidas(164 a.C.). Judas Macabeu, literalmente Judas o Martelo (martelo no sentido de clava de guerra) impediu a aniquilação do povo judeu e mais do que isso impediu a aniquilação da sua cultura que naqueles tempos remotos significava a perda da sua religião e da sua identidade pois os selêucidas tinham cultura helénica e queriam impô-la aos outros povos. Após a reconquista de Jerusalém, era necessário purificar os locais profanados. Durante a celebração e purificação da cidade e do templo era necessário acender uma luz a Chanucá durante um tempo determinado para que houvesse purificação. Para esse fim foi encontrado um só vaso de azeite abençoado, não havia mais azeite e o pequeno vaso era manifestamente insuficiente. Por outro lado o azeite do ano estava ainda por fazer porque as azeitonas ainda se estavam a colher nas oliveiras. Ora este azeite que deveria ser bastante para um dia durou uma semana iluminando dia e noite e dando tempo a que o novo azeite saísse do lagar e fôsse abençoado pelo Sumo Sacerdote. Este milagre é a festa das luzes, tantas quantos os oito dias que essa luz primordial se manteve acesa. ................................... A nossa matriz Greco-Latina bebeu em fontes persas e hindus. A renovação da luz pelo nascimento de um Deus Sol vitorioso sobre as trevas. Mitra é esse Deus Sol. É representado por um menino muito semelhante ao que hoje é o Menino Jesus. Em louvor de Mitra sacrificavam um touro negro que simbólicamente era uma encarnação do mundo das trevas, das cavernas e grutas e também a encarnação das forças obscuras e da Lua............................................. O Cristianismo Romano vem calcar e recalcar toda esta imensa iconografia simbólica e apropriando-se da realidade existente, transforma-a à sua imagem: Duzentos anos antes do Cristianismo ser considerado por Roma como a religião do Estado, já o deus Mitra tinha sido adoptado pelos exércitos de Roma que espalharam santuários por todo o império. A estes santuários ofereciam pequenas figuras esculpidas ou moldadas, os ex-votos. A representação de Mitra como Deus solar que faz renascer a luz, da treva, usando a figura de uma criança masculina recém nascida conjuntamente com um touro sacrificial, ou a ser sacrificado era comum. Hoje mantêm-se no presépio sem que deles suspeitemos. O Presépio Cristão tem antepassado nestes altares a Mitra que terão talvez inspirado a pedagógica representação que posteriormente terá sido feita por S. Francisco de Assis. Sem que saibamos a vaquinha no estábulo do nosso presépio é a figura do sacrifício a Mitra e o testemunho da vitória da luz sobre a tenebrosa escuridão. Mitra é agora o menino Jesus. Curiosamente no Império Romano, Mitra tinha uma data de nascimento estabelecida que era precisamente o correspondente ao dia 25 de Dezembro. Esta data fixa sobrepôs-se à data móvel do solstício. O solstício que tem variado entre o dia 20 e 25 durante estes séculos da nossa experiência. Por estarem mais familiarizados com Mitra os cristãos do Oriente continuam a comemorar o nascimento de Jesus noutro dia. ................ A nossa raiz muçulmana aparentemente não liga a esta data, mas sem dúvida respeita-a formalmente ou não fosse Cristo um dos cinco mais perfeitos profetas e o mais importante imediatamente a seguir a Maomé. Além disso esses nossos antepassados que vieram invadir a península Ibérica pelo séc. VIII e XIX da nossa era, eram instruidíssimos comparativamente com a rude e analfabetizada nobreza medieval. Falavam mais do que uma língua além da sua, sabiam cálculo matemático, geometria, astronomia; tocavam instrumentos musicais, declamavam poesia, escreviam e liam. Não nos podemos esquecer que foram eles que terão inspirado Carlos Magno a aprender a ler e a escrever, e a deixar de escrever os caracteres latinos na forma que hoje chamamos letra maiúscula, para os escrever de forma cursiva sem levantar a ponta da cana (caneta) como os Mouros faziam e tal como hoje fazemos.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Nicholas Oulman -"Com que voz"

O fado que hoje conhecemos cantado por tanta gente mais nova não seria possível sem a refundação que um grande compositor levou a cabo durante a década de sessenta e setenta do século passado. Chamou-se e chama-se Alain Oulman pelo menos enquanto continuarmos a cantar as suas músicas pelas ruas. O filme que é um documentário precioso, mostra como Alain Oulman soube perceber uma intérprete como Amália, e entender como ela poderia cantar fados com maior amplitude melódica e de maior complexidade harmónica. Como seria possível com a melodia certa fazê-la cantar grandes poemas, de grandes poetas. No filme, Amália diz que estava à espera daqueles fados. Alain Oulman podia ter sido só o compositor que conhecemos e não teria sido pouco, mas foi compositor enquanto trabalhava diáriamente gerindo os negócios da sua família, e não só. Foi dramaturgo, encenador, director de actores...e tantas outras coisas até acabar por ser editor na "Calmann-Levy" pertença de um tio seu. Foi editor de Catherine Clement, Patricia Highsmith, Amos Oz. Um editor como poucos foram, de maneira gentil e sem forçar ou impôr a sua vontade, a verdade é que foi capaz de criar as condições para que os seus escritores dessem o melhor de si próprios.------------------------------------------------------------------- Nicholas Oulman é filho de Alain Oulman, a produção do filme não lhe foi facilitada por isso, não teve apoios nem das estações de televisão nem das entidades estatais que gerem fundos para possibilitar a realização cinematográfica. Argumentavam que não tinha currículo. Na verdade Nicholas, em Portugal e no estrangeiro, sempre trabalhou em cinema em curtas metragens realizando, coproduzindo etc. Finalmente Paulo Sousa foi o produtor principal que assegurou a possibilidade do filme ter sido feito.------------------------------------------------------------------------ O filme é belíssimo, começa com a imagem deslizando ao longo do interior do piano que Alain tinha na sua casa de Paris e que hoje se encontra no Museu do Fado. Familiares e vários entrevistados vão-nos contando o que guardam de Alain e daqueles dias difíceis. Os testemunhos dão-nos a imagem indirecta de Alain. As fotos em detrimento da imagem em movimento aumentam a necessidade de ver aquela pessoa de que ás vezes se ouve a voz, por fim Alain aparece. Ao piano vai tocando para Amália uma música que compôs e canta na sua voz profunda quase em surdina. Canta um poema de Cecília Meireles: "Soledad". A música é lindíssima. Amália canta também recebendo o poema e a música entendendo cada nota, cada sílaba. O poema parece feito à medida daquela música de tal forma com ela se casa. Entre compositor e cantora percebe-se uma admiração mútua, uma reverência e respeito perto da veneração. Sendo pares e geniais ambos preferem dar a primazia ao outro... ... ... ... ... ... ... O filme acaba. Enquanto passa a ficha técnica, continuamos o ouvir as vozes de Alain Oulman e Amália Rodrigues cantarolando e trauteando a música. Sem as suas presenças que as imagens tornavam quase físicas começamos a sentir a profunda saudade da sua ausência. Uma dor fina sobe do peito aos olhos, e estes ficam molhados. Nicholas Oulman conseguiu nas imagens do seu filme materializar a Saudade, e o Fado. Nicholas Oulman esteve na apresentação do filme e pareceu-me um ser especial, modesto e delicado, que recusa o vedetismo fácil. A sua presença física e a sua atitude faz lembrar o seu pai, mas também Amália. O poema de Cecília Meireles nunca foi gravado por Amália. Parece que direitos autorais não deixaram até hoje que o poema se recolha naquela melodia de beleza indescritível. Era uma justiça que faríamos à memória da poeta, do compositor e de Amália. Era uma forma de tributo ao filme e a Nicholas Oulman.