sexta-feira, 26 de maio de 2017

Azulejo no leilão.

Há dias descobri que um azulejo meu tinha sido vendido num leilão. Pintei-o no ano de 2001. Nele escrevi um rol de perguntas. Não me parece hoje que sejam perguntas a que se tenha de dar resposta.



               Em que pensas quando não pensas em Nada?
               Vês o azul ou só o silêncio ecoa dentro de ti? 
               Sentes o tempo ou és tu o tempo sem começo ou fim?
               És tu ainda?


quinta-feira, 11 de maio de 2017

O medo e a máscara.

 O desenho a caneta nasceu primeiro em papel, num dos cadernos de notas que propositadamente mantenho em simultâneo.


Representando uma espécie de transparência, como numa radiografia, desenhei de memória a figura de um gigantone, de maneira a ser possível ver no interior o seu carregador.
A primeira vez que vi estas figuras, foi em criança num desfile carnavalesco. Era muito pequeno e não terei percebido logo que aquela aterradora figura gigante era uma paródia que tinha no seu interior uma pessoa que a transportava.
Foi com espanto que vi surgir uma abertura até aí coberta por um véu negro, e através dela aparecer um olhar escrutinador. Até hoje tenho viva essa sensação de surpresa e de alguma forma revivo a mesma emoção sempre que ocorre alguma revelação e percebo alguma coisa nova. Há vezes que descubro o que todos sabem, outras o que muitos sabem. Mas há outras que descubro o que ainda ninguém tinha percebido.

 Agora durante um daqueles períodos em que estava a olhar para o quadradinho em branco sem assunto para pintar, desfolhei o livro de apontamentos onde tinha desenhado inicialmente aqueles bonecos e retomei o olhar desenhando no azulejo com o pincel.

A chacota não resistiu à sua segunda queima e cindiu a minha intenção de retomar esse olhar.
O olhar que pintei no azulejo não é o olhar de quem olha para fora. Talvez seja antes o olhar de quem no exterior toma consciência do que está no âmago daquilo que teme. Talvez seja o olhar da perda de inocência. 





segunda-feira, 8 de maio de 2017

Azulejo avulso e Azulejo de figura avulsa.



Os azulejos avulsos são aqueles que fazem parte de um, ou de vários painéis de dimensões desconhecidas. 
Independentemente da sua leitura ser prejudicada, é por vezes possível ela poder ser ainda apreendida se o azulejo identificar um detalhe que consiga ainda ter expressão sem o resto do conjunto. É o caso de detalhes florais, do rosto de querubins, ou de azulejos de repetição. Na maioria das vezes estes azulejos acabam por não mostrar figura, ou padrão identificável e só são salvos das montureiras de entulho porque correspondem à dimensão necessária para colmatar alguma falha de azulejos em outro painel, prevenindo a ruína ou a depredação dos ainda expostos.




Azulejos de figura avulsa, são azulejos que apresentam uma imagem integral, que vive autónoma. 


 
Seja a sua narrativa um discurso compreensível ou não. Seja ela ilustração de história feita ou de episódio por contar. 

Por vezes com os azulejos em presença pode haver dúvida se o azulejo pertence a um conjunto ou se é figuração individual. Geralmente os azulejos de figura avulsa apresentam algum tipo de enquadramento ou moldura,


ou têm marcas de limitação que os pode relacionar com outro azulejo idêntico que seja posto lado a lado,



ou exibem algum tipo de marcação ou assinatura.


 Ainda assim há azulejos que não se revelam se pertencem a algo maior que o que a sua quadratura parece mostrar.






 

domingo, 7 de maio de 2017

Azulejos - A surpresa da fornada. A noite

 Quando os azulejos entram na mufla para lá passarem doze horas, cozendo a pintura feita no seu vidrado, abre-se um período de expectativa semelhante ao que nos acontece quando a noite cai. 
Quem já passou a noite longe dos meios de iluminação disponíveis nas cidades contemporâneas, terá ideia da limitação que o breu nocturno impõe às tarefas que na luz do dia são simples de executar. 
Mesmo psicológicamente essa impossibilidade de ver a distância parece limitar a capacidade de planeamento, antevisão e boa esperança. Quem se sente doente piora sempre com a noite. 
Por alguma razão de protecção evolutiva o nosso sistema vital abranda e adormece. É essa necessidade de descanso que parece transmitir a sensação de infortúnio eminente que para uns se traduz em insónia, o medo de dormir e não acordar; enquanto para outros, os que não suportam a ansiedade da espera, o adormecimento é rápido e profundo.
Com a aurora tudo volta a ser.




Algumas coisas porém deixam de ser o que aparentavam, pois tal como alguns azulejos que saem da mufla, verificamos que perderam a sua integridade.









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Orfandade.


segunda-feira, 1 de maio de 2017

Catarse (versão corrigida 2017)

Pelo ano de 1983 entre Abril e Maio, escrevi um texto vagamente poético que relatava a sensibilidade face à minha condição de operário metalúrgico. Sem saber estava a escrever uma elegia a um mundo em desaparecimento uma vez que tinha sido decidido acabar em Portugal com o alto-forno (1), e subsequentemente com a metalurgia e a construção naval. Apostava-se mais na importação de partes para montagem do que na industrialização de raiz com fabrico a partir da matéria prima.
A modernização tecnológica posterior acabou com as máquinas electromecânicas e semielectrónicas com que eu trabalhei e aquele hipocausto mudou para o outro lado do mundo.
O texto esteve perdido durante anos até agora. Fiz-lhe algumas correcções, e aqui o deixo com a ilustração de um pequeno painel de quatro azulejos, que pintei de memória, 20 anos depois em 2003.








O bucolismo que havia nos campos em redor
jaz entre bidons velhos, pedaços de plástico
e bocados de sucatas enferrujadas.
Há montureiras de entulho.
Por todo o lado despejos, 
braseiros de fogueiras fétidas, 
piras de lixo fumegando, cinzas...
Entre toda a desolação 
ovelhas seu pasto têm,
ruderais ervas as mantêm.
Mansas dormem na sombra 
de oliveiras tristes,
deitadas entre cardos
insubmissos e agrestes.
Negam a esterilidade 
à secura cáustica de venenos químicos.
Mesmo naqueles dias 
em que os pássaros cantam
e há flores abertas;
mesmo nos dias claros e quentes, 
em que as praias no mar da paisagem 
na linha do céu ao fundo 
estão cheias de banhistas;
os sentidos  não se comprazem 
no desconsolo daquela ruína.
Dos barracões gigantes como hangares
o ruído intenso e monótono espalha-se pela charneca: 
O estrépito cavo das prensas estremece o chão
e marca o tempo e o contraponto
do rítmico matraquear das alavancas, 
dos cadenciados estampidos hidráulicos das engrenagens, 
dos silvos pneumáticos dos dispositivos 
do rangido telúrico dos maquinismos…
Lá dentro há uma neblina:
óleos de arrefecimento são pulverizados 
continuadamente pela rotação dos tornos revolver,
pela fricção dos apalpadores nas árvores de excêntricos,
pelo esmagar das esperas contra os braços que as enlaçam,
pelos ferros que arranham ferro e arrancam limalhas.

Há poeiras corpusculares em suspensão 
atomizadas pelo corte dos diamantes
e pelos jactos de água
nas mós saturadas das rectificadoras.
De outra nave sobem vapores espêssos
fumos turvos dos tanques de imersão 
dos metais incandescentes
no óleo da têmpera.
Gases voláteis dos desengordurantes
suspendem-se nas tinas
até às serpentinas de condensação. 
 
Aquele nevoeiro sem esperança 
rompe-se duas vezes por dia,
solenemente, antes do vazamento.
Oficia o mestre forneiro
após a correcção da liga,
lançando o desescoriante magnésico 
naquela lava metálica líquida,
e então daquele rubor incandescente
sobem no ar em aparição
clarões de relâmpagos atordoantes
e os olhos parecem cegar
atrás das pálpebras cerradas.

Naqueles pavilhões os ciclos mecânicos, 
tornam reflexos e automáticos 
os gestos que os manobram e controlam, 
repetitivamente idênticos como os engenhos.
Um calor intenso dilui-se dos esforços
os corpos metálicos rugem febris
com o arfar dos corpos carnais que os operam.
Óleos maquinais e suóres misturam-se,
circulam em refrigeração,
naqueles corpos animais e animados
por vezes é aspergido  sangue.
Nos barracões profundos e escuros
o sol que nunca se põe
está ali sobre as cabeças
muito branco e intenso
concentrado em tubos de gases raros
em descargas contínuas
cinquenta vezes por segundo
fluorescente em si mesmo.
Nos barracões disformes, 
o tempo cronométricamente
expressa-se na na produção a cumprir, 
na precisão e no rigor
sem espaço para a falha,
afirma-se na intolerância,
nos "zero defeitos"
na ininterruptibilidade,
na velocidade de execução.

Rotativamente em ciclos, 
corpos substituem corpos
ausentes temporáriamente,
em pausa para dormir, 
comer e se recriarem.
Sempre da mesma maneira,
exaustivamente:
Três vezes oito horas por dia. 
Em turnos contínuos.

Passaram já oito horas desde que cheguei para o recomeço.
Limpo as mãos ao desperdício de trapo.
Interrompo as máquinas:
reponho-lhes ferros afiados,
troco as pastilhas sinterizadas de metal duro, como diamante.
Meço, afino tolerâncias, verifico calibres;
confirmo com calas e padrões,
retomo o funcionamento,
refaço as minhas medições,
com o rigor das dezenas de mícron,
reinicio o andamento das máquinas.
Cumprimento o camarada que me veio render. 
Entrego ao chefe de turno o meu gráfico de produção
e as peças que maquinei. 
Saio para os vestiários.
Abro os meus cacifos.
Como se tirasse a própria pele
dispo a camisa de cotim ultramarino salpicada de óleo, 
descalço as botas gordurosas
sacudo-lhes a serradura polvilhada
com que é semeado o pavimento escorregadio da oficina,
às narinas vem-me de novo o incenso do pinho.
Tiro as calças manchadas pela farinha cinzenta do aço moído,
hoje ganhei na ilharga algumas mascarras de fuligem.
Foi nas garras dos cêstos de têmpera que vieram do revenido.
Sacudo a roupa para largar as limalhas mais finas.

Do cacifo da roupa limpa retiro
o cubo de sabão azul e branco e a toalha. 
Dirijo-me ao balneário
Passo pelas fileiras de lavatórios. 
Entro num cubículo com chuveiro 
abro a água e fico ali 
na eternidade breve daquele duche
sob a cascata de água tépida,
ungido de sabão a derreter,
esvaindo na espuma os óleos, 
o suór e a atenção concentrada 
a que fiquei obrigado durante oito horas. 
Aos poucos os músculos perdem a tensão, 
a moínha do corpo cansado alastra num afago morno.
Visto-me com a roupa de andar na rua 
sem as cores e os odores da ganga e do trabalho.
Penteio-me. 
Tenho as unhas limpas,
mas o fedor do petróleo permanece nas minhas mãos, 
com a escova não o consegui arrancar da pele
nem ele se diluiu com o sabão na água quente. 
Nem dos poros consegui arrancar o finíssimo pó metálico 
que os assinalou visíveis e cinzentos. 
Saio cá para fora. 
Na rua o ar matinal parece mais fresco,
mais limpo que o ar nocturno.
Noutro barracão pico o meu cartão no relógio de ponto.
Tenho a garganta sêca e o autocarro para apanhar.
Passaram dezoito minutos desde que larguei as máquinas
Vou a uma tasca beber uma cerveja rápida… Duas... Três!
Reponho a água que deixei agarrada ao fato de trabalho. 
O relaxamento muscular é mais completo 
a serenidade apodera-se de mim. 
Volto para casa. “Quase nove horas!”
Ao longe, no fio do horizonte, a cidade. 
Adivinho-lhe, o frenesim que precede o trabalho diário. 
É a hora de ponta.
Nos ouvidos o silvo residual 
do barulho ensurdecedor da fábrica. 
Entro numa espécie de letargia 
ausento-me e flutuo imponderal.
Acontece-me assim sempre 
depois do último dia de trabalho,
no turno da noite.
Mesmo quando não bebo umas cervejas.
Sinto-me bem!
Limpo e de corpo lavado,
dentro da roupa de andar na rua.
Entro no autocarro,
sento-me no banco como se caísse na cama, 
e adormeço.

 



(1) (As palavars não são minhas mas sim do insuspeito António Champalimaud.)