A modernização tecnológica posterior acabou com as máquinas electromecânicas e semielectrónicas com que eu trabalhei e aquele hipocausto mudou para o outro lado do mundo.
O texto esteve perdido durante anos até agora. Fiz-lhe algumas correcções, e aqui o deixo com a ilustração de um pequeno painel de quatro azulejos, que pintei de memória, 20 anos depois em 2003.
O
bucolismo que havia nos campos em redor
jaz entre
bidons velhos, pedaços de plástico
e bocados
de sucatas enferrujadas.
Há
montureiras de entulho.
Por todo
o lado despejos,
braseiros
de fogueiras fétidas,
piras de
lixo fumegando, cinzas...
Entre
toda a desolação
ovelhas
seu pasto têm,
ruderais
ervas as mantêm.
Mansas
dormem na sombra
de
oliveiras tristes,
deitadas
entre cardos
insubmissos
e agrestes.
Negam a
esterilidade
à secura
cáustica de venenos químicos.
Mesmo
naqueles dias
em que os
pássaros cantam
e há
flores abertas;
mesmo nos
dias claros e quentes,
em que as
praias no mar da paisagem
na linha
do céu ao fundo
estão
cheias de banhistas;
os
sentidos não se comprazem
no
desconsolo daquela ruína.
Dos
barracões gigantes como hangares
o ruído
intenso e monótono espalha-se pela charneca:
O
estrépito cavo das prensas estremece o chão
e marca o
tempo e o contraponto
do
rítmico matraquear das alavancas,
dos
cadenciados estampidos hidráulicos das engrenagens,
dos silvos
pneumáticos dos dispositivos
do
rangido telúrico dos maquinismos…
Lá dentro
há uma neblina:
óleos de
arrefecimento são pulverizados
continuadamente
pela rotação dos tornos revolver,
pela
fricção dos apalpadores nas árvores de excêntricos,
pelo
esmagar das esperas contra os braços que as enlaçam,
pelos
ferros que arranham ferro e arrancam limalhas.
Há
poeiras corpusculares em suspensão
atomizadas
pelo corte dos diamantes
e pelos
jactos de água
nas mós
saturadas das rectificadoras.
De outra
nave sobem vapores espêssos
fumos
turvos dos tanques de imersão
dos
metais incandescentes
no óleo
da têmpera.
Gases
voláteis dos desengordurantes
suspendem-se
nas tinas
até às
serpentinas de condensação.
Aquele
nevoeiro sem esperança
rompe-se
duas vezes por dia,
solenemente,
antes do vazamento.
Oficia o
mestre forneiro
após a
correcção da liga,
lançando
o desescoriante magnésico
naquela
lava metálica líquida,
e então
daquele rubor incandescente
sobem no
ar em aparição
clarões
de relâmpagos atordoantes
e os
olhos parecem cegar
atrás das
pálpebras cerradas.
Naqueles
pavilhões os ciclos mecânicos,
tornam
reflexos e automáticos
os gestos
que os manobram e controlam,
repetitivamente
idênticos como os engenhos.
Um calor
intenso dilui-se dos esforços
os corpos
metálicos rugem febris
com o
arfar dos corpos carnais que os operam.
Óleos
maquinais e suóres misturam-se,
circulam
em refrigeração,
naqueles
corpos animais e
animados
por vezes
é aspergido sangue.
Nos
barracões profundos e escuros
o sol que
nunca se põe
está ali
sobre as cabeças
muito
branco e intenso
concentrado
em tubos de gases raros
em
descargas contínuas
cinquenta
vezes por segundo
fluorescente
em si mesmo.
Nos
barracões disformes,
o tempo
cronométricamente
expressa-se
na na produção a cumprir,
na
precisão e no rigor
sem
espaço para a falha,
afirma-se
na intolerância,
nos
"zero defeitos"
na
ininterruptibilidade,
na
velocidade de execução.
Rotativamente
em ciclos,
corpos
substituem corpos
ausentes
temporáriamente,
em pausa
para dormir,
comer e
se recriarem.
Sempre da
mesma maneira,
exaustivamente:
Três
vezes oito horas por dia.
Em turnos
contínuos.
Passaram
já oito horas desde que cheguei para o recomeço.
Limpo as
mãos ao desperdício de trapo.
Interrompo
as máquinas:
reponho-lhes
ferros afiados,
troco as
pastilhas sinterizadas de metal duro, como diamante.
Meço,
afino tolerâncias, verifico calibres;
confirmo
com calas e padrões,
retomo o
funcionamento,
refaço as
minhas medições,
com o
rigor das dezenas de mícron,
reinicio
o andamento das máquinas.
Cumprimento
o camarada que me veio render.
Entrego
ao chefe de turno o meu gráfico de produção
e as
peças que maquinei.
Saio para
os vestiários.
Abro os
meus cacifos.
Como se
tirasse a própria pele
dispo a
camisa de cotim ultramarino salpicada de óleo,
descalço
as botas gordurosas
sacudo-lhes
a serradura polvilhada
com que é
semeado o pavimento escorregadio da oficina,
às
narinas vem-me de novo o incenso do pinho.
Tiro as
calças manchadas pela farinha cinzenta do aço moído,
hoje
ganhei na ilharga algumas mascarras de fuligem.
Foi nas
garras dos cêstos de têmpera que vieram do revenido.
Sacudo a
roupa para largar as limalhas mais finas.
Do cacifo
da roupa limpa retiro
o cubo de
sabão azul e branco e a toalha.
Dirijo-me
ao balneário
Passo
pelas fileiras de lavatórios.
Entro num
cubículo com chuveiro
abro a
água e fico ali
na
eternidade breve daquele duche
sob a
cascata de água tépida,
ungido de
sabão a derreter,
esvaindo
na espuma os óleos,
o suór e
a atenção concentrada
a que
fiquei obrigado durante oito horas.
Aos
poucos os músculos perdem a tensão,
a moínha
do corpo cansado alastra num afago morno.
Visto-me
com a roupa de andar na rua
sem as
cores e os odores da ganga e do trabalho.
Penteio-me.
Tenho as
unhas limpas,
mas o
fedor do petróleo permanece nas minhas mãos,
com a
escova não o consegui arrancar da pele
nem ele
se diluiu com o sabão na água quente.
Nem dos
poros consegui arrancar o finíssimo pó metálico
que os
assinalou visíveis e cinzentos.
Saio cá
para fora.
Na rua o
ar matinal parece mais fresco,
mais
limpo que o ar nocturno.
Noutro
barracão pico o meu cartão no relógio de ponto.
Tenho a
garganta sêca e o autocarro para apanhar.
Passaram
dezoito minutos desde que larguei as máquinas
Vou a uma
tasca beber uma cerveja rápida… Duas... Três!
Reponho a
água que deixei agarrada ao fato de trabalho.
O
relaxamento muscular é mais completo
a
serenidade apodera-se de mim.
Volto
para casa. “Quase nove horas!”
Ao longe,
no fio do horizonte, a cidade.
Adivinho-lhe,
o frenesim que precede o trabalho diário.
É a hora
de ponta.
Nos
ouvidos o silvo residual
do
barulho ensurdecedor da fábrica.
Entro
numa espécie de letargia
ausento-me
e flutuo imponderal.
Acontece-me
assim sempre
depois do
último dia de trabalho,
no turno
da noite.
Mesmo
quando não bebo umas cervejas.
Sinto-me
bem!
Limpo e
de corpo lavado,
dentro da
roupa de andar na rua.
Entro no
autocarro,
sento-me
no banco como se caísse na cama,
e
adormeço.
(1) (As palavars não são minhas mas sim do insuspeito António Champalimaud.)
Sem comentários:
Enviar um comentário