sábado, 21 de maio de 2016

A força dos homens.

Nos arraiais tradicionais montavam-se parques recreativos de diversão em que cada um podia exibir ou descobrir capacidades inatas, suspeitadas ou desconhecidas.
Nasciam nesses sítios verdadeiras vocações desportivas: Os atiradores especiais a pressão de ar; os vertiginosos voadores em cadeirinhas de carrossel; os frenéticos pilotos de carrinho de choque.
Nessas feiras populares despontavam também as primeiras penas que iriam engalanar o macho desafiador de outros machos e objecto de cobiça das fêmeas: Aí se provava a destreza arrebatadora do lançamento das argolas aos pinos premiadores das bonecas com cabeça de porcelana, dos ursos de peluche e dos trens de cozinha. Aí se provava a valentia pela maneira como se enfrentavam os sobressaltos da jornada na montanha russa e o arrojo com que se ultrapassava a viagem nocturna do comboio fantasma. Aí se prometia e cumpria a força viril com que se conseguia lançar o foguetão para além dos anéis de Saturno. 
 

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Passarão labaredas.

Encontrei um saco de fotografias abandonadas.
Lado a lado as fotografias revelavam uma interveniente principal. Contavam a história de uma vida da qual eu nada sabia. O tempo concentrado em imagens, acontecendo  ao mesmo tempo. 
Por mais que eu tentásse construir uma narrativa não seria possível sequer adivinhar os sentimentos, os sonhos; as sensações daquela pessoa. 
Aparecia bebé de colo nos braços de sua mãe. Menina de escola primária no vestido da primeira comunhão. Um retrato emoldurado de adolescente esplendorosa... e escondida por baixo desse retrato,  a fotografia do casamento. Em pose institucional os noivos. Para que assim fosse lembrada a felicidade. Aquela que se envia à família e se guarda emoldurada no quarto para que diáriamente não seja esquecida. 
Uma fotografia anotada no verso dizia "vista do meu quarto", outra "os filhos da Zézinha"...
Depois pensei que quando partirmos as fotografias do nosso tempo não permanecerão. São virtuais. São mais perto de tudo o que já existiu e é transitório. São como uma labareda. 
Lembrei-me então do Álvaro de Campos e da "Tabacaria", e apesar da hora matutina, ou talvez por causa dela, entrei na taberna e pedi um branco velho. Se fumásse seria o momento de acender um cigarro; um pensativo cigarro.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Esculturas de Beatriz Cunha

Relicários Efémeros
no Convento do Espírito Santo
em Loulé.

























Vista da Praça da Républica para o Convento do Espírito Santo e Instituto Superior D. Afonso III



sexta-feira, 13 de maio de 2016

Para melhor compreensão das esculturas de Beatriz Cunha: CORPO ESPAÇO NEGATIVO





CORPO ESPAÇO NEGATIVO

O tronco é uma parte aparentemente pouco expressiva no corpo humano, no entanto é uma sólida raiz onde está implantado o pescoço que faz a ligação à cabeça, e onde estão implantados os membros. O torso não configurando a individualidade que se apreende numa cabeça ou num busto, não deixa de transmitir um cânone de vitalidade e acção. As clássicas armaduras romanas destinadas a proteger os soldados exibiam em relevo o ideal do torso de um atleta em máxima forma, identificando-o assim como um guerreiro temível.

 No tronco, como num cofre, estão protegidos órgãos vitais que nos transmitem directamente a percepção da própria existência. A alteração do batimento cardíaco ou impossibilidade da respiração são sintomas imediatos da fragilidade da vida. O esvaziamento da bexiga é sinal de reacção ao perigo e de prontidão para o combate. O estômago revolto indica o sentimento de relutância e mesmo repugnância por tudo que é errado e contrário à ética.

Nos museus os conservadores de escultura antiga guardam os torsos sobreviventes às catástrofes e aos iconoclastas. Esses fragmentos em pedra ou bronze, dos quais muitas vezes nada se sabe; nem do autor nem da cultura sua contemporânea, suscitam a interrogação sobre o que é o tempo, e sugerem reflexão sobre a transitoriedade de tudo aquilo que julgamos eterno. Não existe tempo sem memória. O vazio que o molde de um torso propõe é essa amnésia. É a recusa do despojo como objecto último. É a negação na recusa do salvado de um tempo passado pela afirmação do negativo da sua concretização. Os moldes são ausências, existem antes e além do que encerram, são o tempo simultâneo ao espaço como numa estrela negra.

CORPO ESPAÇO NEGATIVO é uma peça que exibe um molde do tronco de um corpo humano depositado sobre uma mesa-de-cabeceira recuperada dos despojos urbanos. Na escultura de Beatriz Cunha é patente a necessidade de contrariar a obsolescência característica da economia de descartabilidade e consumo. Nesta peça a ausência é revelada pelo vazio; o grande vazio da sociedade contemporânea ocidental face à necessidade de transformação de um cânone hegemónico e destruidor.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Para melhor compreensão das esculturas de Beatriz Cunha. O "MEMORIAL À IMPERMANÊNCIA".



Montagem da peça Memorial à Impermanência.

MEMORIAL À IMPERMANÊNCIA
(portal para outra dimensão de nós mesmos)

As portas são uma metáfora para a liberdade e para a intimidade. Quando abertas permitem a passagem de um espaço para outro. Quando fechadas encerram e tornam privado o que se quer proteger e reservar. Diversas são as portas: na sua transparência, na sua solidez, na sua permeabilidade e assim também no seu objectivo. As portas podem guardar o sagrado, e de igual modo podem guardar o assustador e o terrível. Num e noutro caso parecem isolar-nos do medo. É preciso vencer o medo quando se escolhe abrir uma porta, quando em fuga se deixa uma realidade por mais horrível que ela possa ser por outra totalmente desconhecida.


As cadeiras são o símbolo de poder. Na Europa cultivou-se a imagem do poder soberano associando-o a uma cadeira grande, um trono. Os portugueses das navegações sentavam-se em cadeiras enquanto os representantes dos povos que os recebiam se sentavam no chão. Na língua inglesa, aquele que preside ainda é o homem da cadeira, o “chairman”. A cadeira é a imagem que aos outros damos de nós próprios, é o ego. Simultâneamente a essência do ser, naquilo que ele tem de mais imaturo e naquilo que ele tem de mais evoluído e transcendente.


Estas portas já não guardam relíquias ou tesouros, não se podem fechar à chave. Continuam porém a consagrar a função para a qual foram concebidas, em conjunto formam um portal. Uma pausa no átrio onde cada um se situa face ao momento seguinte. Nelas ainda é legível o desvelo na sua construção: os vidros biselados que deixavam ver as porcelanas antigas vindas da China, as aberturas por onde se desprendia o aroma das maçãs que amadureciam ao longo do Inverno… Lado a lado com as portas os fragmentos das cadeiras aparecem como uma liberdade poética de tudo isto. A sua disposição no conjunto cria no olhar uma dinâmica rotativa de movimento. A transitoriedade do que foi outrora sólido e institucional, do que foi tirânico e inamovível.

O “MEMORIAL À IMPERMANÊNCIA” é um memorial a nós próprios, mas também aquilo que nos oprime e que julgamos definitivo.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Para melhor compreensão das esculturas de Beatriz Cunha.




O coração ao centro e o coração do lado esquerdo foram esculpidos em madeira de Acácia.

Em frente à casa havia uma acácia. Crescera durante 40 anos e tornara-se abrigo de verdilhões e toutinegras. De folha perene abrigava-os da chuva do Inverno e da inclemência do sol do Estio.

Em assembleia de condomínio, todos os condóminos excepto o rés-do-chão onde a árvore se encontrava, sentenciaram contra a acácia: porque dava cabo de tudo, porque era árvore de cemitério, porque roubava ao primeiro andar a vista para a esplanada da taberna em frente, porque atraía bicharada…

O corte da árvore foi adiado anos sucessivos. Porém o muro que vedava a propriedade, empurrado pelo tronco da acácia cada vez se inclinava mais e o risco de rotura era evidente. Esperou-se o Inverno e a sua dormência para o abate da Acácia. Num dia sem planeamento chamou-se um serrador e a árvore foi decepada.

O seu corte constituiu espectáculo para a vizinhança e para os costumeiros fregueses da taberna. O esforço na recolha de toda a ramagem da árvore e o seccionamento do tronco, deixou sequiosos os amigos do petisco e abriu-lhes o apetite. O taberneiro viu o negócio do “snack-bar” aumentar. O abate da árvore quebrou o tédio e diluiu a sobriedade na medida do aumento do número de rodadas ensopado pelos convivas, daquela tarde ensolarada de Inverno.

Ficaram aqueles troncos cortados como relíquia da hospitalidade que a árvore dispensava a chapins e felosas, melros e milheirinhas. Da Acácia nasceram várias esculturas, relicários em forma de mão, de coração… No sítio da Acácia nascem agora as flores brancas do jasmim e do aloendro, a flor de S. José, o carpinteiro.
A mão foi esculpida em madeira de Acácia.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Sculptor | Beatriz Cunha | Escultura: Montagem da exposição na galeria do Convento Espir...

Sculptor | Beatriz Cunha | Escultura: Montagem da exposição na galeria do Convento Espir...: Under the curatorship of painter João Moniz and with the assistance of José , Óscar and Peter the Municipa...

Reflexo na janela da galeria de um transeunte que fotografava a sala de entrada da Exposição dos Relicários Efémeros no Convento do Espírito Santo de Loulé.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Cantarinha



teu coração é cantarinha
de ter água a refrescar
sua água geladinha
quem a poderá provar
arde nos lábios como lume
é pedra de brunir a eito
é vazio dentro do peito 
é garra de afiado gume