CORPO ESPAÇO
NEGATIVO
O tronco é
uma parte aparentemente pouco expressiva no corpo humano, no entanto é uma
sólida raiz onde está implantado o pescoço que faz a ligação à cabeça, e onde estão implantados os membros. O torso não configurando a individualidade que se apreende numa cabeça
ou num busto, não deixa de transmitir um cânone de vitalidade e acção. As clássicas
armaduras romanas destinadas a proteger os soldados exibiam em relevo o ideal
do torso de um atleta em máxima forma, identificando-o assim como um guerreiro
temível.
No tronco, como num cofre, estão protegidos
órgãos vitais que nos transmitem directamente a percepção da própria existência.
A alteração do batimento cardíaco ou impossibilidade da respiração são sintomas
imediatos da fragilidade da vida. O esvaziamento da bexiga é sinal de reacção
ao perigo e de prontidão para o combate. O estômago revolto indica o sentimento
de relutância e mesmo repugnância por tudo que é errado e contrário à ética.
Nos museus
os conservadores de escultura antiga guardam os torsos sobreviventes às
catástrofes e aos iconoclastas. Esses fragmentos em pedra ou bronze, dos quais
muitas vezes nada se sabe; nem do autor nem da cultura sua contemporânea,
suscitam a interrogação sobre o que é o tempo, e sugerem reflexão sobre a
transitoriedade de tudo aquilo que julgamos eterno. Não existe tempo sem
memória. O vazio que o molde de um torso propõe é essa amnésia. É a recusa do
despojo como objecto último. É a negação na recusa do salvado de um tempo
passado pela afirmação do negativo da sua concretização. Os moldes são ausências, existem
antes e além do que encerram, são o tempo simultâneo ao espaço como numa
estrela negra.
CORPO ESPAÇO
NEGATIVO é uma peça que exibe um molde do tronco de um corpo humano depositado
sobre uma mesa-de-cabeceira recuperada dos despojos urbanos. Na escultura de
Beatriz Cunha é patente a necessidade de contrariar a obsolescência
característica da economia de descartabilidade e consumo. Nesta peça a ausência
é revelada pelo vazio; o grande vazio da sociedade contemporânea ocidental face à necessidade de transformação de um cânone hegemónico e destruidor.
4 comentários:
Muito interessante , gostei de ter vindo.
Saudações cordiais
Obrigado São. Gostei que tenhas vindo e comentado.
Tão bem diz, que : "não existe tempo sem memória" - tão bem conseguido, por portas travessas, no trabalho da escultora, visto que os moldes são ausências - mas tão importantes para a concretização de algo, seja lá por qual ângulo se veja isso.
abç amg
Obrigado Carmem!
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