quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Para Herberto Helder o gás dos últimos dias.



por causa do seu poema:
a última bilha de gás (que) durou dois meses e três dias.


a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para outra bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por aqui acabasse nazi, já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer que a habita e move, não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás,
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!

( A Morte sem Mestre;. Porto Editora, 2014)




o gás dos últimos dias


Saberá Herberto Helder das palavras. 
Do peso que têm as palavras
na boca como pedras,
as pedras que Demóstenes colocava
para não gaguejar. 
Mas de gás? sabe  Herberto Helder
tanto como eu sei de Demóstenes.

Há gases que matam
e outros que permitem a Vida
e os que permitem um tipo de vida em vez de outra.
De gases é composto o Ar que respiramos
uma mistura rigorosa numa proporção exacta,
estequiométrica:
Com um pouco menos de oxigénio 
sucumbiríamos exaustos;
com um pouco mais de oxigénio 
arderia tudo à nossa volta.

O gás dos últimos dias 
podia ser suficiente para morrer? Sim! 
Se fôssem últimos, os dias:
Uma absurda escorregadela no último banho,
uma queda com pancada fatal na nuca ou na têmpora,
sem anúncio ou aviso que seria último o banho;  
Ou o esquentador sem chaminé nem janela para a rua
na casa de banho...
Mas já não os instalam assim.

É verdade que a vida está cara
e a morte tão cara quanto ela.
É essa a natureza do preço,
do mausoléu, do cenotáfio e da vala comum.
Já vivi em tempo de dinheiro escasso,
tomei banho de água fria sem gaz, nem bilha,
e carreguei lenha a poceiro nos dias de caramelo
para aquecer a água no pote de ferro de três pernas,
água carregada a cântaro entre as mulheres
- as mulheres não se queixam de nada no mundo,
nem do preço das bilhas de gás,
mesmo quando parece que só estão
se queixando -
aprendi com elas.
Não me queixo do custo do gás,
nem da desgraça dos países,
cheios da abundância
do gás por baixo
nem de toda a sua miséria,
presente e futura,
nem da miséria de isto por aqui acabar nazi
para mim que sou qualquer coisa semita, 
Judeu e Mouro entre tantas outras características
que herdei aqui nesta orla do mediterrâneo atlântico.

No entanto não me conformo de isto por aqui
acabar
com um qualquer Zyklon B mortalmente eficaz
na destruição massiva de vidas humanas como pragas,
zoológicamente classificadas imprestáveis 
pela organização normativa e industrial,
de ladrões genocidas,
que cria valor acrescentando os desertos 
a que chama espaço vital.
O kaos e a eternidade são uma probabilidade
na fronteira do nosso entendimento
e são a mesma coisa num fugaz ponto do espaço
onde tudo existe ao mesmo tempo.


Saberá Herberto Helder das palavras,
do peso que têm as palavras
na boca como pedras,
as pedras que Demóstenes colocava contra o Caos, 
mas de gás?

2 comentários:

Lilazdavioleta disse...

Magnífico poema e não menos magnífico posfácio .

Maria Eu disse...

Sim, Herberto sabia apenas de palavras.

Muito boas, as tuas palavras, também!

Beijos, Luís :)