sábado, 3 de julho de 2010
O papel usado para embrulhar o pão.
Fôsse eu de outra cêpa e teria recebido cadernos para desenho com páginas de brancura irrepreensível; livros de papel de alvura ligeiramente desmaiada para que o branco pudesse ser usado também como cor; folhas de papel sem mácula em resmas sem parcimónia… Mas não; o que logo me deram foram pedaços de papel alisado sem sucesso, em que o vestígio do que esteve embrulhado imprimira como em sudário, a fibra moldável do embrulho.
O papel de embrulhar o pão era o mais asseado. Não por ser o mais uniformemente limpo de vestígios, mas porque o pão lhe dava uma sacralidade imaculada e ritual. Uma pureza advinda de uma substância abençoada capaz de saciar a alma e a fome matinal.
Desejava sempre que as folhas fossem da compra de pelo menos 16 carcaças, ou ainda melhor se fossem 16 papo-sêcos; daqueles que o padeiro após cortar as 40 grama de massa, volteava e enrolava as pontas fazendo dois bicos de mama em cada extremidade da carcaça. As carcaças sem bico cabiam em papel mais pequeno mas os dezasseis papo-sêcos obrigavam a que o caixeiro da padaria tivesse de utilizar uma folha inteira.
Este papel do pão aparecia côr de rosa escuro, côr de café com leite e cinzento claro. Qualquer gota de água o fragilizava e rompia facilmente. Seria um problema pintar nele com aguarelas ou guache mas isso eram coisas que eu não tinha. O papel de embrulhar o pão era uma aventura em si.
As impurezas abundantes não interferiam com o desenho que eu fizesse e criavam um cenário que a princípio me desgostava mas depois se tornou numa espécie de paisagem de fundo. Os detritos mostravam ciscos e grãos sobejantes de outros papéis que em outras vidas tinham tido côr semelhante e ao serem desfeitos e novamente amassados nasciam para uma das funções mais nobres e breves da vida de uma folha de papel: embrulhar o pão-nosso de cada dia.__________________________________________
Papel pautado não é bom para desenhar._____
Mais tarde nos primeiros cadernos escolares que tive, preenchi com desenhos as últimas folhas porque a sua utilização futura me parecia ser tão longínqua que talvez não chegasse nunca. Essa atitude foi fortemente desencorajada com enérgicas bofetadas da mestra explicadora. Esta espécie de pré-primária particular era ministrada por uma senhora professora reformada que me deixava em espera durante horas de interminável tédio, e não me ensinava a ler por estar ocupada com as explicações a alunos que já andavam na escola e tinham dificuldades.
Não sei se tal violência e a forma indigna como os meus desenhos, usados como prova do meu desleixo em resposta a indagação dos meus pais sobre a minha lenta progressão foram a causa de desgosto na utilização de papel pautado. Não foi suporte que eu gostásse, apenas tinha usado como recurso. Ainda hoje não gosto de desenhar sobre papel pautado ou quadriculado. Mesmo para escrever, não o prefiro.
Uma vez há muitos anos vi uma exposição de desenhos feitos sobre papel pautado, institucional, tipo Papel Almaço; daquele em que se prestavam as provas de passagem de classe e o Primeiro Exame no final dos quatro anos de escolaridade iniciais.
Eram desenhos feitos por adultos mas tinham a aparência de serem infantis como os que eu poderia ter feito na altura em que me desencorajaram a não desenhar no papel de linhas.
Tais desenhos pertenciam a homens e mulheres das Nações Indígenas dos E.U.A. Datavam dos finais do séc. XIX, quando estes povos foram confinados a territórios restritos e submetidos a evangelização. O papel pautado tinha sido abandonado como desperdício em antigas instalações militares desmanteladas. As velhas casernas eram os locais onde os “índios” tinham sido acantonados antes da sua deslocação para os territórios das chamadas reservas ficando desde logo impedidos de serem nómadas e seguirem as Estações e a Natureza.
Os desenhos simples descreviam cenas da sua vida quotidiana mas neles havia uma conformação que nos poderosos desenhos simbólicos feitos em plena liberdade para ilustração das suas tendas de nómadas parecia não existir. Ficaram-me esses desenhos na memória, a par dos meus, e a certeza que o papel pautado não é bom para desenhar.________________________________
A folha em branco.
Esta divagação sem sentido aparente, tinha por objectivo falar desse bloqueio que muita gente diz sentir face à folha em branco.
Qualquer papel cuja tez não indicie dignidade para algo mais do que um rascunho, um esboço, um estudo preparatório perde a carga intimidatória e os mais sensíveis perdem o acanhamento e sem qualquer peia seguem livremente criando.
Anos mais tarde talvez tivesse doze anos, assisti à explicação de como se poderia desenhar a forma complicada de um copo ou uma garrafa em que a falta de simetria das curvas denuncia logo a falta de rigor do desenho ou a incapacidade da mão seguir o olhar. Era uma técnica simples e para mim intuitiva. Riscar linhas de contorno sucessivas em busca da linha correcta. Primeiro no ar seguindo o contorno do objecto, depois no papel o mais levemente possível. Aos poucos a forma aparecia esbatida como que envolta por nevoeiro. Com a borracha tiravam-se as linhas que agora claramente excessivas se percebia não serem as correctas para capturar a forma do objecto.
Ver as coisas explicadas daquela maneira deu claridade ao caminho que eu trilhava na escuridão. Foi uma revelação perceber que poderia chegar sózinho a conclusões sistematizadas por outros. Nessa altura descobri então outra coisa. É que não havia linhas incorrectas ou supérfluas. Todas são úteis e se forem demasiadas para que a forma se veja então é porque ainda são poucas para dar corpo à forma e densidade ao fundo.
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1 comentário:
Excelente retrato da relação do menino com o papel. Adorei!
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