Era uma vez uma velha rua estreita de casas baixas e antigas onde era difícil circularem em simultâneo carros e pessoas.
Por ser pequena e só ter casas de habitação foi decidido desviar o trânsito para as ruas paralelas mais largas. A rua seria devolvida totalmente ao passeio dos peões e para isso a calçada teria de ser refeita.
Assim foi:
Levantaram as pedras negras de basalto do macadame onde antes era a faixa de rodagem das viaturas; nivelaram o chão e repavimentaram toda a rua com um lençol de calcário branco. Dessa forma algum carro que por necessidade tivesse de entrar na rua para assistir alguma pessoa, ficava a saber que ali era só para peões.
Logo que o tráfego deixou de passar na rua, notou-se uma diferença imediata, deixou de se sentir tanto ruído.
Na rua agora silenciosa onde deixara de se ouvir o estrondo dos motores das motas, camiões e automóveis apenas se ouvia o fino bicar das pancadas certeiras das picadeiras com que os calceteiros íam talhando os cubos brancos daquele mosaico calcário e o tilintar com que os martelos aconchegavam as pedras na cama fôfa de tuvenâ (1).Este trabalho durou alguns dias.
Numa casinha que tinha um quintalinho com flores e muitos gatos ao Sol, morava uma moça muito bonita, cabelo azeviche, olhos castanhos e sardas no nariz. Um calceteiro jovem que andava naquele trabalho de repavimentação da rua simpatizou com a menina desde o primeiro dia que olhou para ela.
Sempre que a via sair para a rua sentia o coração bater mais rápido. O seu coração estremecia no peito tal como o chão estremecia com o bate-bate do maço eléctrico.
Durante aqueles dias o jovem calceteiro e a menina trocaram olhares e sorrisos mas veio o dia em que toda a pedra estava colocada e o calceteiro teve de partir para nova obra noutro arruamento da cidade.
Na manhã seguinte toda a rua estava resplandecente. Tinha um ar limpo e aquele mosaico imenso tornava-a maior. O piso brilhava na sua alvura calcária e reflectia a luminosidade nas fachadas das velhas casas.
Todas as pedras estavam perfeitamente alinhadas milimétricamente encostadas umas às outras e com a mesma altura numa lisura plana de lago.
Os moradores ao saírem de casa paravam à entrada da porta admirando aquela rua que nem parecia a mesma.
Os habitantes das ruas vizinhas e os transeuntes que ali passavam paravam uns instantes comtemplando a nova paisagem com admiração.
A menina do quintalinho onde havia gatos espreguiçando-se ao Sol quando saiu para a rua foi também arrebatada pela beleza daquele passeio novo. Foi para escola e passou o seu dia como habitualmente; ao voltar para casa, apreciando ainda o novo pavimento reparou numa pedra diferente que tinha no caminho bem no meio da entrada da sua porta.
A pedra tinha o feitio de um coração.
A menina percebeu que tinha sido o calceteiro que com ela trocara olhares e sorrisos quem tinha talhado aquele coração de pedra e ali o colocara.
O tempo passou. A menina adolescente cresceu. Um dia mudou de casa e o coração lá ficou. Porém poucos dias depois de estar na sua casa nova não aguentou mais e voltou à velha rua para recuperar uma pedra que fora talhada propositadamente para ela.
O coração de pedra que ilustra esta história foi ela quem mo emprestou. É uma pedra preciosa que um dia um calceteiro enamorado talhou e lhe ofereceu colocando-o a seus pés.
(1) Tuvenâ - "Tout-venant"mistura de pó-de-pedra, areia e gravilha fina cuja granulometria se adequa ao tipo da camada final que resulta na superficie do pavimento. No caso da calçada portuguesa a pedra moída que constitui a gravilha não ultrapassa os 5 mm.
5 comentários:
Lindo , lindo , lindo .
Tens que escrever mais estórias , e se possível com corações à mistura .
O calceteiro teve bom gosto . A pedra é muito bonita .
Obrigado!
Tentarei escrever mais, mas é difícil. Como sabes as estórias que têm corações às vezes são dolorosas, mesmo para quem escreve.
bela história, muito enternecedora...
adorei! não poderia ter sido contada melhor :)
adorei! nao poderia ter sido contada melhor :)
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