sábado, 19 de agosto de 2023

Ao Haroldo de Campos


Como se fôsse possível ele disto saber ou ter alguma curiosidade.



Doíam-lhe as pontas dos dentes,

uma nevralgia comum

nos que combatem o escorbuto

comendo limões à dentada.

-A piorreia vai-lhe levar os dentes-

Disse-lhe a periodontologista

Numa das raras aparições

em que não entregara a consulta à higienista

para passar no ginásio de “fitness”,

ou fornicar com o amante

-Falta de limpeza! O sr. não lava os dentes?

-(…)

-Pelo menos não os lava como deve ser!

-(…)

O senhor fuma?

-(…)

-Tanto tártaro… Pedra; sabe!

-(…)

-Mas afinal o que é que andou a comer?...

-(…)

-Bebe muito chá?

- (…)

Curcuma! Dir-lhe-ía

se possível fôsse responder,

boca escancarada;

de um lado a fresa pneumática,

de outro a cânula de aspiração de líquido.

 

A estrutura do poder é essa

Provocar a ansiedade. Julgar.

Causar o sofrimento.

A sugestão da dor

pela sensibilidade antecipada da dor.

Implantar uma raiz de mêdo.

Deixar uma marca indelével:

Uma cruz numa porta

que se receou apagar

ou uma estrêla que se cose na veste

com a côr amarela

com que a açafroa tinge o aço.

 

Desistiu das consultas de periodontologia

quando uma dor violenta

o levou de urgência a um dentista.

Após radiografias

e dois pareceres médicos independentes

o estomatologista extraiu-lhe 4 dentes sem cáries

que tinham ganho quistos nas raízes.

Decidiu nesse momento inconsciente

morrer desdentado, velho,

contra a opinião das amigas

que lhe palpavam o “look”. 

Um sibilar novo alterara-lhe a loquacidade, 

devido a falta dos incisivos 42,41,31 e 32.

Passou assim a expressar melhor

a fundamentação do desprezo

pela ignorância dos deuses médicos

dessa outra especialidade clínica.






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