domingo, 21 de março de 2010

O viandante sem mensagem.

(...)Matei em mim o desejo de narração da viagem! -Não quero mais contar sobre a montanha mais alta, ou o verde que não existe nesta flora. Que coisa trago e que coisa roubo, aos guardiães da memória quando lhes dou notícia que o tempo da primeira mãe é muito anterior à era da que têm como sua? Como poderíeis continuar se vos provasse ser a casa dos deuses, uma montanha que fosse a maior houvésseis visto, nada mais que uma pequena serra? Como poderíeis valorizar vossa memória antiga se a soubésseis curta perante o que outros escreveram sobre o que faziam tantas eras antes de vos saberdes como povo? Então que dizer ainda do outro verde mais resplandecente? -Não necessito mais contar nem a viagem, nem a deriva, nem a chegada. A direcção somos nós e por isso verdadeiramente não chegamos nunca a parte alguma se não nos encontrarmos como destino. Eu que julgava ter conquistado a distância e o horizonte trazendo a lembrança da luz que outros nunca viram, reparo agora, não ter sido mais arguto, nem melhor oráculo, do que a mulher cega que risca na areia o voo dos pássaros. Tal como eles voam, andamos nós sem sentido. Não sabem eles que toda a liberdade do seu voo é como um risco numa poça de areia. Porque assim é! Também não sabemos nós que numa poça de areia cabe toda a força e toda a esperança e toda a glória. -Não se apazigua em mim a inquietação por saber que o sofrimento dos outros não é o meu. Não se atenua a dor que me dilacera por se alhearem dela os que quotidianamente a sentem. Da mesma maneira ao ser humano que dorme no chão sem agasalho, não lhe faz menos falta a cama macia onde me deito. -A narração de tudo o que vi poderá trazer-me a insígnia de altanaria mas então não vos mereceria nem o retorno, pois que o sofrimento é igual em todo o lado e dele frutifica o embotamento dos sentidos e da alma.(...)

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