A exposição de Robert Longo em Lisboa está montada de forma a poder passar a emoção duma experiência religiosa.
Os simbólicos Mártires e Santos, são hoje representados pelo ocidentalizado homem comum, de casaco e gravata, aparentemente seguro em seu modo de vida, até que o deus da destruição lhe toque com um projéctil ou um estilhaço fatal.
Somos recebidos com a imagem gigantesca de um políptico em que se faz a representação do esplendor da luz. Nele vêem-se silhuetas numa catedral cristã, o sacerdote iluminado pela luz filtrada do imenso vitral nas suas costas, ergue ao alto um crucifixo, impondo-o a uma multidão que se prolonga e da qual parecemos fazer parte.
Passada esta gigantesca obra entramos na outra sala. Uma figura de bronze à nossa escala integra-nos de novo dentro de um outro cenário. Já não somos mais espectadores. O alvo somos também nós. O instante que a escultura de bronze representa, de um homem a ser alvejado, está congelado no tempo como num "frame" de imagem virtual.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhS_hN6YG3rlD4QSAMAp1oG9ep4Hum2mjpz2xJD6gWNae3lPku7fvMGJjmI6MYwb11ZFMHMYpUdbpean9OmskxQDle_tK4CnGnLkEuDGgrAPQorJXCKCt3C4r-utsq6BH6XQTgzJ8TlzsGd/s400/20-03-2010_153.jpg)
Readquirimos a nossa condição de observadores passivos. O homem a ser alvejado pode ser isolado do fundo e passa a ser um objecto em torno do qual podemos circular. Parecemos libertos de uma realidade em que por momentos podíamos ser confundidos. Afinal não é nada connosco. Como poderia ser connosco?! O tal cenário é um enorme e meticuloso desenho de uma rua em que se amontoam destroços de edifícios e automóveis como sabemos existirem nas cidades da guerra: no Líbano, na ex-Jugoslávia, na Palestina, no Afeganistão, no Iraque...
Na sala de Freud, a santíssima trindade está presente: A Criação, Encarnação e Destruição estão ali como estão na suástica hindu transformada em símbolo nazi colocado sobre a porta de entrada do seu consultório em Viena.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh6_AuZcsR_heuDWbnA6-aSJ8RHQz7PIcEfGHQ3juCavxKTJxEmpGLhi26QNFIdG5kEGiVhJq3s2M7uf7ShmPeOo5uknDTgIGOo3Hy2sVosEg1pGUd915ihYpRElsU2jLDeCl0v4gm9V_sm/s400/20-03-2010_146.jpg)
Assim o mistério se vai revelando entre o que é criação e destruição. O escoamento dos fluidos produzido por uma explosão atómica é um enrolamento turbulento de gases num cogumelo que sobe na atmosfera. Este enrolamento é inquietantemente semelhante ao enrolamento das ondas. Os gigantescos cogumelos atómicos e as gigantescas ondas são manifestação duma força incomensurável, suprahumana, de um deus que tanto pode criar como destruir.
Somos confrontados com a nossa insignificância, afinal a boca gigantesca do tubarão dirige-se mesmo a nós. Somos nós como Jonas que vamos ser devorados pelo grande peixe. Vão é o nosso desejo que Niníve seja destruída. A nossa fuga transforma-nos em presa. Na sala final podemos ver a cobertura gótica da grande catedral. Os arcos em ogiva são uma vez mais verosimilhantes à forma da boca escancarada de um grande tubarão.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi0pjbDWptJnWiiWuOEgGk1tNJQaaCWK5-h52Y9a2fGZ-CBDrQ9WuDoMeLSaO6ASeSA15Dihvn2AX2YzIDMqK09Exl8ECQk3NxVUfU2NDtqUeZg9dGP6ZZSoqtSE-kC_-E7lmjYTPyuRTA7/s400/20-03-2010_144.jpg)
Numa sala intermédia expõem-se os projectos de Robert Longo. O trabalho em pequena escala forra as paredes em cima e em baixo como numa pequena capela de ex-votos. O rigor com que o projecto foi transposto para a sua gigantesca escala final é um assombro de precisão. Aqui tudo aparece como dentro de um pequeno geôdo em que se cristalizam na pequena escala as possibilidades dos grandes formatos.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjKAcZfYF-p1txsIEu7EU9yWLtChoml3aCxMmQSrDNWgM7BS2eSXNE2AClpqB-6TUCBujbsz5crcA746Rgx6nDyiMt94RFLnAZcznd3gro4D0mHreYNnGE7ufAifjtodrtrnNSoHpyATguI/s400/20-03-2010_141.jpg)
Há uma coerência súbita entre um rosto de criança adormecida e um planeta iluminado, o universo encerrado num rosto de criança e um astro flamejante percorrendo o cosmos.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj92GeQSaUshiarqIhswNW0rUoubU9shY-MoXxWF2nn_9_zbofcJ1x8-duKUHFbRffXxwRVBPgDw4WVQTvwy70XdTPo3yQxq0PHbAaytTOUdgxOk5IK89DhXp1Ch6BOZ3V7G64ThvXbOi4s/s400/20-03-2010_142.jpg)
O trabalho de Robert Longo é essencialmente a preto e branco. O preto do carvão, os cinzentos da grafite, o branco do papel. O vermelho aparece nas rosas com a mesma subjectividade que se pode usar para as ligar à vida e à morte.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiivBtcD3tQUi62sTzx0Z8ADShSANpOU2sMQy5XeRkZsHRgsvIz_nA6yLpO-6mAYGe5NIb3z295dtmHT0wRUGRCwq0QaX8Hw7yaByLXtvqBjAPxQkF8IwEs_vmOx4MQDh6qkGTKGJpJYnWK/s400/20-03-2010_138.jpg)
O terror pela barbárie é o terror que nós próprios inspiramos quando construímos o inferno dentro de nós e na terra alheia. Não poderemos aceitar que o nosso legado para o futuro seja uma contaminante e mortalmente radioactiva lixeira nuclear.
2 comentários:
[...]O terror pela barbárie é o terror que nós próprios inspiramos quando construímos o inferno dentro de nós e na terra alheia.[...]
forte visao...
Muito bem. Excelente "reportagem" e reflexão.
E claro, a barbárie é antes de mais o homem que acredita na barbárie como diz o Lévi-Strauss
:)))
Enviar um comentário