sábado, 22 de setembro de 2012

A Folia, a cravagem do centeio e o Fogo de Santo Antão.




Pieter Bruegel-O Velho
"A dança dos camponeses"
A Folia, o dar ao fole, seja o da gaita ou o arfar do folião pode ser também entendida como uma espécie de alegria desvairada. Um estado eufórico de pré-loucura ou mesmo um estado de intoxicação. Intoxicação que pode ser sugestionada, como um transe; ou provocada por alguma substância ingerida.



Pieter Bruegel-O Velho
"A dança do mastro de Maio"

Na ”Idade da Folia” bebiam-se uns copitos valentes, comiam-se uns cogumelos parvos, bebiam-se umas infusões galdérias e defumavam-se umas ervas doidas. Além destas coisas menos sacras parece que o maior pecado era causado pelo pão. Ou pela falta dele.
Pieter Bruegel-O Velho
"A quermesse de S. Jorge"
A falta de “pão” é sabido que leva a maior fragilidade física. Acrescer a escassez alimentar com esforço físico e pouco descanso provoca desfalecimentos muitas vezes acompanhados de alucinações auditivas e visuais. As descrições dos êxtases místicos de santos e santas foram encarados de maneira diferente quando informação histórica mais detalhada entendeu os limites a que se submeteram, levando uma vida de privação e austeridade extremas: Longos jejuns, pouco tempo de descanso, longas horas de vigília em oração e trabalho físico intenso.
Se não há falta de pão, a causa da alteração de consciência, a tal intoxicação pode estar no próprio pão. Isto é, não no pão, pois o pão é sagrado nem que seja pela sua função de saciar e nutrir, mas sim num parasita que esteja no pão. Por exemplo um fungo.

O fungo das espigas de centeio confunde-se com os grãos por ter uma forma semelhante e parecer à primeira vista um grão mais comprido e torrado. Chama-se a este fungo tóxico, esporão do centeio ou cravagem do centeio. Os enfermos do envenenamento pela cravagem do centeio (em francês esporão=ergot) são vítimas da ergotamina. A ergotamina é uma substância que no séc. XX recebeu grande publicidade por estar na base do LSD. Como é sabido provoca delírios e alucinações várias.

Quando ouvi esta história logo pensei que nem todos comeriam pão de centeio, mas depois percebi que naqueles tempos da Folia poucos eram os que podiam comer outro.
Pieter Brueghel-O Velho
"O casamento dos camponeses"
Só as classes mais abastadas consumiam pão de trigo. Mesmo entre nós o pão de trigo ainda há 50 anos era chamado por bolo de trigo ou bôla de trigo. Hoje ainda se chama bolas ou bolinhas aos pães de trigo que se vendem nas padarias. A fartura urbana das padarias e pastelarias tornou incompreensível a razão de apelidar um pão por bolo e assim a palavra assumiu o género feminino e mudou a acentuação de bôla para bola, ainda mais a forma arredondada dos pães identificou-os mais com bolas do que com bolos.
Aveia,Centeio,Trigo

Após este parêntesis o que eu queria dizer é que era o povo quem comia os marrocates, os pães de centeio, pois o milho vindo do Novo Mundo estava a iniciar o seu cultivo na Europa.
É nesta Europa que se registam inúmeros casos de loucuras epidémicas. Esses casos de alienação e alucinação massivas levaram a actos de loucura e carnificina em que se supliciaram aqueles que se julgava estarem possuídos pelo demónio.

Anónimo(?) Staatliche graphische Sammlung, Monaco
Santo Antão rodeado de Enfermos do Fogo Sagrado.

O envenenamento produzia estados de estupor alucinogénio, mas também excitação e ansiedade nervosa, sensações dolorosas de queimadura nas extremidades do corpo devido à vasoconstrição. Dedos, mãos, pés, braços pernas necrosavam e eram mesmo praticadas amputações.

File:Hieronymus Bosch 002.jpg
Hieronymus Bosch
"As tentações de Santo Antão"

A esta enfermidade chamaram-lhe Fogo de Santo Antão porque a única terapia que parecia causar efeito no seu alívio era a oração a Santo Antão um asceta, eremita do deserto norte africano que teria tido visões e teria sido tentado pelo demónio mas deste assédio teria triunfado sem corrupção.



As folias pelo menos algumas delas, parecem-me assim uma compassada e interminável marcha ascendente para o cadafalso. Uma atitude mental de desprendimento, uma alienação do corpo perante o inexorável destino. Um abandono obstinado.

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