O olhar retrospectivo mais enraizava a sua convicção profunda, não lhe
permitindo evitar criar aquele mal-entendido que a remota memória da sua
percepção lhe narrava repetidamente e de maneira dolorosa.
Afinal no seu tempo de infância, o meio rural em que nascera desconhecia a
meninice. As crianças eram pessoas pequenas em que se depositava a esperança e
se fazia voto para que crescessem bem e com saúde, tão rápidamente quanto
possível, de forma a aumentarem a família e a comunidade do povo da aldeia.
Qualquer prazer lúdico para o mimo de uma criança era feito á imagem e
semelhança daquela paisagem de lameiros estreitos, socalcos abruptos, floresta
cerrada cobrindo as serras pedregosas e as suas fragas medonhas. Mais do que
isso a escassez e a necessidade desse tempo impunha uma frugalidade que
obrigava a que tivesse de ser ali feito qualquer artefacto para a recreação.
Recolhiam-se seixos rolados em forma de peixe, ossos que pareciam cabras; com o
canivete cortavam-se barcas de casca de sobreiro, talhavam-se juntas de bois em
cortiça, piões do rapa dos lenhos das podas de oliveira.
Da feira de ano vinha às vezes um assobio de barro em forma de pássaro, um
pião de jogar, uma sacholinha miniatura que o ferreiro recuperava dos sachos roídos
pelos anos de abrasão a abrir rêgos no saibro granítico.
Ele tinha recebido um sachinho assim. Mas aquele agrado que o seu pai lhe
tinha querido fazer em celebração da sua maturação para além da idade em que
muitos morriam de febres ou ficavam tolhidos, fora recebido por ele como uma
punição que pusera termo à sua inocência e ao tempo despreocupado, sem sachos
nem enxadas, nem obrigatoriedade de ir à escola.
3 comentários:
Há doutores que podiam ser pastores e ser felizes, e pastores que podiam ser doutores e ser infelizes.
E vice-versa.
Uma bela e triste história de tempos que já não existem. Ou existirão ainda, no nosso Portugal profundo?
Como concordo com o primeiro comentário .
Enviar um comentário