quinta-feira, 18 de abril de 2013

Havia uma profunda revolta, um ressentimento sem consolo quando falava da meninice e do futuro que julgou lhe destinarem: "-Os meus brinquedos foram o sacho e a enxada!"




O olhar retrospectivo mais enraizava a sua convicção profunda, não lhe permitindo evitar criar aquele mal-entendido que a remota memória da sua percepção lhe narrava repetidamente e de maneira dolorosa.
Afinal no seu tempo de infância, o meio rural em que nascera desconhecia a meninice. As crianças eram pessoas pequenas em que se depositava a esperança e se fazia voto para que crescessem bem e com saúde, tão rápidamente quanto possível, de forma a aumentarem a família e a comunidade do povo da aldeia.
Qualquer prazer lúdico para o mimo de uma criança era feito á imagem e semelhança daquela paisagem de lameiros estreitos, socalcos abruptos, floresta cerrada cobrindo as serras pedregosas e as suas fragas medonhas. Mais do que isso a escassez e a necessidade desse tempo impunha uma frugalidade que obrigava a que tivesse de ser ali feito qualquer artefacto para a recreação. Recolhiam-se seixos rolados em forma de peixe, ossos que pareciam cabras; com o canivete cortavam-se barcas de casca de sobreiro, talhavam-se juntas de bois em cortiça, piões do rapa dos lenhos das podas de oliveira.
Da feira de ano vinha às vezes um assobio de barro em forma de pássaro, um pião de jogar, uma sacholinha miniatura que o ferreiro recuperava dos sachos roídos pelos anos de abrasão a abrir rêgos no saibro granítico.

Ele tinha recebido um sachinho assim. Mas aquele agrado que o seu pai lhe tinha querido fazer em celebração da sua maturação para além da idade em que muitos morriam de febres ou ficavam tolhidos, fora recebido por ele como uma punição que pusera termo à sua inocência e ao tempo despreocupado, sem sachos nem enxadas, nem obrigatoriedade de ir à escola.





3 comentários:

Rural disse...

Há doutores que podiam ser pastores e ser felizes, e pastores que podiam ser doutores e ser infelizes.

E vice-versa.

Justine disse...

Uma bela e triste história de tempos que já não existem. Ou existirão ainda, no nosso Portugal profundo?

Lilazdavioleta disse...

Como concordo com o primeiro comentário .