Á memória das Pessoas do Poeta Fernando Pessoa e dele mesmo.
Delirium Tremens
Acordáste transpirado.
O corpo tiritando de
frio. Os pés gelados a doerem tanto que não se conseguem segurar no chão a não ser por um
formigueiro doloroso a esboroar a carne em dor até ao osso.
De noite ninguém veio
trazer-te a coberta de lã da cama quente.
Pois ninguém podia
vir.
Já não há ninguém que
possa vir tapar-te na noite fria. Resguardar-te da ansiedade e do desespero
gélido. Amparar-te no medo... Se gritares por auxílio é em vão! Gritarás sem que da noite alguém possa vir socorrer-te.
Que pavor não
obter mais resposta que esse zumbido fino do silêncio nos ouvidos.
A coberta, essa, era
da outra casa, da outra cama quente. Ficou lá e tanta falta fazia agora. Trocaste-a por aquela garrafa de eau-de-vie ...a velha coberta de papa
que tanta falta faz! E o cão? ... O cão ferrado na perna a doer a doer, a rasgar
a pouca carne. Ainda assim, pouca mas a doer muito, a não poderes fazer sequer um movimento. Que dor! E
tanto frio…
Logo logo, abre o
carvoeiro às cinco e meia, … e a leitaria às seis. Um branco velho, uma jeropiga,
uma malga quente de café com genebra e um cigarro, um mata-bicho qualquer que o bicho tenho-o aqui,
tenho-o aqui a ferrar na perna, a bater na cabeça,... a centopeia a marchar, patas e patas de botas cardadas
…Bum! Bum! ...Bum! Bum!…Compassadamente, em marcha, o sangue a querer esvair-se, gorgolejando e
querendo sair, pelas têmporas, pelas coxas, o formigueiro…
É noite e é Sábado!
Quando
era pequeno o pai vinha aconchegar a roupa, tirava o braço pisado debaixo do corpo para que não
ficásse dormente e acariciava a boca babada, de borco, entreaberta e cerrava-a numa carícia como se fechásse um
olhar cego para este mundo e me oferecesse na boca fechada outra vida, na palavra desperta no outro lado do sonho, e me levasse nos braços dormindo e me deixasse a correr livre, com os
calções do verão, no jardim como um jockey amarelo num cavalo azul, ou um cão verde…
aqua vitæ, aqua vitæ, aqua vitæ
doi-me o abdómen!
quero urinar, quero urinar,
tremem-me as mãos,
todo eu tremo.
… soltem-me as mãos, quebrem-me as amarras
tremem-me as mãos,
todo eu tremo.
… soltem-me as mãos, quebrem-me as amarras
quem foi que me agarrou a esta cama?
quem foi que me amarrou?
quero urinar
rebenta-me a bexiga.
Tragam-me um copo de vinho
deixem-me por Deus ao menos despedir-me do Vinho
de toda a terra e de toda a felicidade por vir
dêem-me um Copo de Vinho
Rebenta-me a bexiga não posso urinar levem-me
daqui
doi tanto
está tanto frio
tirem-me daqui
libertem-me
libertem-me...
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