a impossibilidade das coisas simples.
O líquido transparente arrefecia e solidificava a sua alvura translúcida no aconchego cerâmico da terra cozida. Com essa pasta branca e macia enchiam o bucho do porco até ficar cheio como um ovo. Àquele balão que era cosido com fio e agulha, dependuravam-no com os restante enchidos em varas horizontais que pousavam nas traves da ampla chaminé que cobria a lareira. Ficava assim o bucho no fumeiro até secar. Após aquela cura e para que a secagem do ar não fosse excessiva ou lhes trouxesse bolores, guardavam aquele fumeiro em talhas que completavam com azeite. Depois os enchidos eram tirados um a um na medida da necessidade.
Para o caldo-verde íam à fonte após o nascer do Sol, que à
noite não se recolhe água das fontes para não perturbar os espíritos das águas que
também repousam de noite.
Na panela de ferro fundido de três pernas deitavam a água
fresca e juntamente com batatas brancas, cebolas picadas e vários dentes de
alho, coziam um chouriço. Quando estavam cozidas retiravam do caldo as batatas
e os alhos que se deixassem apanhar e introduziam uma mão cheia de feijões
debulhados na altura. Esmagavam as batatas cozidas num prato e voltavam a
introduzir aquela papa com as couves-galegas apanhadas de fresco.
As couves-galegas eram finamente migadas com a faca
corticeira contra a mão cheia de verde aflorando logo acima do abraço em tenaz
do indicador com o polegar, o gume da lâmina a desviar-se milimétricamente da
pele gretada pela aspereza da verdugem das refeições quotidianas.
O chouriço que perfumara o caldo guardavam-no para
acompanhar o prato de grelos de nabo com batatas e cebolas cozidas que comeriam
a seguir.
Quando já não havia chouriço ou a panela tivera de ser
acrescentada para mais bocas comerem, tiravam uma colher de unto do bucho e juntamente
temperavam o caldo com o azeite que escorrera para a malga onde tinham pousado
o bucho para o abrirem pelo atilho da linha cosida. Uma colher daquele recheio que
era suficiente para temperar um tacho de feijões, fazia maravilhas no sabor do
caldo verde.
“-Por que é impossível fazer hoje o costumeiro caldo-verde? O
verdadeiro, quero eu dizer!”
Perguntou um sujeito com a mania das “gourmandises”,
a conversa não era comigo; o sujeito não era do tipo de ir à cozinha e eu por
meu lado não sou do tipo de comer na sala. Fiquei na distância mas lembrei-me
do que agora aqui escrevo e pensei:
Como demoram e dão tanto trabalho as coisas simples que
julgamos banais.
5 comentários:
Que magnífica descrição aqui faz. Toda odores, sabores e tradição. Deliciei-me. :)
Obrigado Luísa.
És tão talentoso! Escreves e desenhas tão bem e com tanta alma que me deixas muito orgulhosa.
É um sentimento mútuo Beatriz. Bem sabes como tenho admiração por ti!
não fosse pelo porco, eu adoraria...
Enviar um comentário