quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Para ser sincero eu não gosto de ópera.







Para ser sincero eu não gosto de ópera.
O que eu gosto é de música barroca.
Se a ópera fosse alguma coisa que valesse a pena, o João Sebastião Ribeiro tinha escrito óperas. E não, ele não fez nada disso.
Certo é também, que para mim, o primeiro contacto com a ópera deixou-me um piquinho com sabor a azedo. Eu explico.
 Havia um ovarino que passava ali na rua da minha infância que gostava de ópera. O homem não era peixeiro qualquer, vendia peixe fino, caro, acessível a poucas bolsas. Passava apressado com as canastras enfiadas na recoveira, bem cobertas com oleado amarelo para que o sol não molestásse os peixes. Passava sem apregoar, varapau arqueado pelo ombro, a caminho de fregueses que tinha certos.
 A minha mãe ter-lhe-á comprado, uma vez por outra, salmonetes e talvez robalos.
 Ora o
tal ovarino não perdia nenhuma ópera do Coliseu mas só
quando havia récita no São Carlos lá alugava o fraque da praxe que lhe caucionava a entrada.
Bem! Eu não sei se esta história era rigorosamente assim, mas lá que entre as freguesas da minha rua circulava que o homem alugava o fraque para poder entrar na ópera, lá isso a minha memória recorda-se bem.
Ora por essa altura eu estava sendo iniciado no maravilhoso mundo de transgressão que era o das anedotas do Bocage, supostamente narrando episódios da sua vida picaresca que o carinho popular tinha abrigado no imaginário colectivo.
Naqueles tempos de ditadura com repressão, censura e polícia política, que grito maior de liberdade se poderia dar do que contar as anedotas do Bocage? Repetir o episódio de como ele ganhara a aposta em que conseguiu chamar puta à Raínha. Está bem que nesse contexto essa anedota ainda não me tinha sido transmitida por insuficiência de escalão etário. Era anedota seguramente para maiores de 12 anos e eu só deveria ter 6 ou 7, por isso contavam-me outras sem calão entre as quais aquela em que o Bocage para ir a um banquete de um fidalgo muito abastado foi presenteado com um rico fato de modo a não deslustrar o fausto da ocasião.
O fato enviado, sem destoar da vestimenta dos lacaios de libré, não tinha o requinte nem o luxo das vestes dos outros convidados. O traje não tinha a função de o promover mas sim a de o colocar no seu lugar. Bocage que ficou distante da mesa dos mais ilustres foi sentado entre artífices remediados, saltimbancos agradecidos, músicos itinerantes e demais artistas de muitas profissões que o fidalgo contratava para a celebração da sua glória.
Bocage assim que a comida lhe foi servida começou a encher os bolsos do fato.
Se a princípio os seus parceiros fingiram não reparar no gesto que julgavam de reprovável açambarcamento, pelo menos naquela altura de início de refeição, aperceberam-se depois que se tratava talvez de um desempenho cómico, uma bobagem canhestra daquele genial poeta repentista, irreverente e brejeiro.
Desataram a rir, e à medida que ele ía despejando copos de vinho e colheradas de sôpa sobre o fato a risota chegou ao ouvido do anfitrião que curioso pela excentricidade ergueu-se do seu trono e perguntou: -Que fazes tu Bocage? - Bocage respondeu. -Excelentíssimo e Nobre Senhor, estou alimentando o fato que Vossa Senhoria se dignou mandar trazer a este banquete, uma vez que eu, só por mim, sem ele, não teria dignidade para aqui estar.
Esta anedota sobre o Bocage lembrava-me o ovarino na sua roupa quotidiana com cheiro a peixe e deixava-me aquele desconforto de um fato que tinha de se alugar e sem o qual não se podia entrar no teatro da ópera, deixava-me com um piquinho a azedo. O azedo do fato sujo de comida pelo Bocage.
Talvez que eu tenha percebido tudo mal e a transfiguração do ovarino fizesse parte da transcendência da sua vida diária e fizesse parte da sua paixão pelo mundo da ópera onde os seus clientes abastados não eram mais do que seus pares e à semelhança do conhecimento dos peixes, bastante menos eruditos.
Talvez que eu pensasse que a ópera fosse música para os operários, os mesmos que  via diáriamente da minha janela, a trabalharem no barreiro da fábrica de cerâmica, acartando carregos, carregando toneladas de tijolos e telhas, cantando alto a contagem das peças e cadenciando o ritmo com que as atiravam e empilhavam nas camionetas altas de varais compridos. Talvez tenha sido nessa altura que eu intuí ao olhar para os remendos das suas roupas que eles não tinham dinheiro para alugar um fato de asas de grilo para assistir à ópera. Sim talvez tenha sido por isso que nunca gostei de ópera.
O que eu gosto é de música barroca mas isso é uma outra história.

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