Levam a semana a sonhar com o dia do
jogo.
Anseiam pelo cingir das cores
improváveis da camisola ridícula, pelo garrote sufocante do cachecol em pleno
verão, pelo aconchego apertado do barrete que enfiarão até às orelhas. Sonham assim
uniformizados com a sua hoste, estar lá a presenciar o jogo. Vivem por
antecipação a euforia do triunfo, ainda que alheios à concretização do golo que
decide a vitória, passivamente na expectativa de poderem gritar de alegria
erguendo a bandeira que os identifica e a qual escolheram dedicar afeição.
Quando eu era miúdo calhava ao Domingo,o tempo do relato
da bola era o tempo de recreio dos que não tinham dinheiro para ir ao estádio. Restava-lhes
ficar a ver o jogo pela telefonia. Era o intervalo de reinação em que os homens
tinham o consentimento das mulheres para voltarem a ser miúdos, libertos das
responsabilidades de pais de família. Pelo menos durante duas horas recebiam autorização para estarem
ali parados sem fazer nada nem terem de se justificar pela sua improdutividade.
Este tempo podia até ser alargado às discussões de tertúlia na colectividade,
no café, ou na taberna e podia até ser subsidiado, sem reparo nem censura, para
as despesas alcoólicas que a alimentavam.
Também não lhes era levado a mal essa
obsessão por rapazes e adultos jovens, em calção, a correrem atrás duma bola
num descampado. A sua masculinidade não era posta em causa por esse seu
interesse platónico e certamente desportivo na canela do defesa-central, na
coxa do avançado ou na virilha do ponta-de-lança. A sua virilidade era até incrementada
quando identificavam o seu temperamento com as façanhas e facécias dos seus
ídolos que mau grado a vida monástica que os compelia, se faziam fotografar e
noticiar com raparigas bonitas, inacessíveis de aspecto, e de provimento.
Depois, naquela fraternidade
masculina, não havia barreiras culturais ou sociais que segregassem os que se
abrigavam sobre o mesmo totem: os leões, as águias, os dragões. Do padre ao
juiz, do cirurgião ao magarefe, do chofer-de-praça ao guarda-freio, todos eram pares
e isso trazia facilidades para a família do confrade:
-“Senhor Doutor se lhe pudesse dar
uma palavrinha… viu o jogo ontem?!
Que grande jogatana!... A minha
patroa anda adoentada… Vamos lá ver como é que se portam domingo, lá em cima
não são favas contadas.”
– “Eu bem lhe disse que ía ser assim, e lá em
cima vai ser igual homem! ...Passe cá mais logo e traga a esposa.”
Actualmente o jogo da bola mudou. Mudaram
os adeptos, o sexo dos adeptos, o número de adeptos, aumentaram os dias da semana em que há jogo, aumentou a intensidade com que os
adeptos se alheiam de outras realidades para viverem melhor a sua persona…
O negócio em torno do jogo da bola
cresceu, agora passa nas televisões em canais de assinatura privada com taxa
específica e publicidade paga, muita publicidade, expressa e subliminar.
Tornaram-no num fenómeno, é essa a palavra que escolheram para escamotear a
propaganda levada ao extremo. Impregnando os tempos de informação dos telejornais
como se o assunto merecesse uma atenção igual a uma verdadeira notícia de valor
global. A forma aguda que usam para fazer este “fenómeno”, dando-lhe o destaque
que não dão à informação cultural, à formação lúdica, social e ética dos jovens,
ao cuidado e ao respeito com os idosos, ao respeito pela natureza ou mesmo à prevenção dos cidadãos para
catástrofes, só pode ter um nome: alienação.
O jogo da bola, o futebol, é bem o espetáculo
da democracia totalitária actual. É uma realidade do tudo ou nada em que a
competição se sobrepõe à cooperação.
A cooperação é desvalorizada pela
especialização dos jogadores, com ênfase na eficiência máxima, tornando-se numa
cadeia hierarquizada de responsabilidades e competências. Ainda não se chegou
ao extremo de outras modalidades em que o ritmo foi acelerado pela constante
substituição de jogadores em que se chegou ao limite de uns só atacarem e de
outros só defenderem.
Como no futebol, o resultado desta democracia
totalitária em curso será a massificação e a limitação da iniciativa e da criatividade.
A iniciativa e a criatividade não são para os ousados mas sim para os
autorizados. Uma prerrogativa aristocrática para fidalgos.
Para os outros está-lhes reservado o
estatuto de adepto com direito a um desmoralizante voto periódico e a liberdade
de serem despreocupadamente miúdos no intervalo do recreio durante o tempo restante.
2 comentários:
Grande texto, Luís. Inteligente e lúcido, desmistificador e pedagógico. Uma "pequena história" social do futebol enquanto arma de manipulação e alienação.
(fiquei encantada com o teu comentário ao meu último post: pois se eu amo a pintura flamenga dos séc.XVI e XVII, pois se eu todos os anos-na visita ritual ao meu filho em Amsterdam- vou "namorar" o Vermeer e encontro sempre coisas novas, tinha de ficar encantada com a tua reacção ao meu post:))))! Obrigada e bom fim de semana)
Fico grato e sensibilizado com as tuas palavras Justine. Tem tu também um bom fim de semana.
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