Amo o Porto!
Agora diz-se amo, em vez de gosto, como se
amar fosse coisa banal. Num mundo tão carente de amor é compreensível que assim
se utilizem as palavras sem que se pense muito nos conceitos que implicam. O
grau com que se exprime o apreço por um pão com fiambre é o mesmo com que se
descreve a ligação a uma pessoa ou à terra natal.
Mas à parte
desta consideração sempre amei o Porto. O primeiro despertar para este
sentimento deu-se devido à beleza de uma aguarela que mostrava o Douro sobre a Ponte
D. Luís. Depois a ligação foi intensificada por causa de um filme que correndo
imagens a uma velocidade estonteante provocou em mim uma espécie de exaltação.
O filme era do Manoel de Oliveira e chama-se “Douro, faina fluvial”.
A primeira vez
que cheguei ao Porto tinha 13 anos. Vim numa camioneta que me trouxe de Cinfães
até uma garagem da qual se avistava a Torre dos Clérigos no topo da rua.
Nessa primeira
visita, a chegada foi pela hora do almoço que ía já avançada, a velha camioneta
de carreira trouxera-nos com algum atraso para o que íamos fazer. Almoçámos ali
ao lado da garagem numa bela casa de pasto. Perguntámos que comida estava feita
e pronta a servir. –Tripas… Sim! Disse
eu. À moda do Porto, é claro! A minha
surpresa foi grande e a expectativa gorada. Afinal a refeição de nome exótico era
o que a minha mãe cozinhava em casa chamando-lhe dobrada, ou com mais detalhe,
dobrada com feijão branco para a distinguir da dobrada com molho de tomate.
O almoço foi
pago com uma nota de cem escudos que tinha no rosto a efígie do Camilo Castelo
Branco e no verso uma magnífica gravura com a legenda “Porto meados do século
XIX”. A extraordinária gravura penso que mostra a Rua do Loureiro, e apesar da
miniatura da sua dimensão captava a atmosfera dos dias soalheiros que acordam
com uma neblina matinal que só se encontra nas cidades ribeirinhas junto ao
mar. Esta gravura, enquanto a nota existiu em circulação, foi como uma janela
aberta no meu imaginário para uma cidade fantástica a que só muito mais tarde
voltaria e em que pouco permaneci, devido a visitas rápidas por algum motivo específico. (1)
Desta vez que
me pude demorar mais no Porto também cheguei pela hora do almoço. Ao
estacionar, avistei do outro lado da rua a “Rosa das Iscas”. Na lousa dos
pratos do dia estava gizado “Tripas à Moda do Porto”. E assim foi! Guloso,
ainda perguntei pelas Iscas. Mas o jovem simpático respondeu-me que não. Que
isso era noutro tempo. Mas como é possível uma casa que tem o nome Rosa das
Iscas não ter iscas? Não é possível. Por isso imaginei que ele estivesse a brincar
comigo.
Encriptamento
e subjectividade à parte, nos dias de hoje ao Fernando Pessoa, ou melhor dito, ao
Álvaro de Campos não lhe serviriam “Dobrada à Moda do Porto” fria (2). Tal como não me serviram a mim. Mas
cheguei à conclusão que se quiser comer uma boa dobrada terei de ser eu a cozinhar como aprendi com a minha mãe. Receitas há muitas: Tripas; Tripas à Moda do
Porto; Dobrada com feijão branco, etc. parecendo variações do mesmo, são comida
diferente, mas isso é outro assunto.
(1) Sei agora graças ao trabalho de Maria
Teresa Nogueira de Morais da Cruz Pinho “Luís Filipe de Abreu e o desenho das
notas de escudo do Banco de Portugal” que a maquete inicial foi a de João de
Sousa Araújo sobre uma vista da cidade do Porto, nos meados do século XIX, litografia
de Louis Haghe, com desenho de George Vivian. A imagem escolhida para ser
reproduzida na vinheta desta nota, tem o título “O Porto visto do Convento de
freiras de S. Bento”.
(2) Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo ...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
Dobrada à Moda do Porto
Álvaro de Campos - Fernando Pessoa
1 comentário:
Eu também! Com paixão! Por muitos e variados motivos, mas não pelas tripas...
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