sexta-feira, 10 de junho de 2022

No Dia de Portugal - Falar de Paula Rego



Se todos falam de Paula Rego porque não poderia eu falar de Paula Rego.

Deveria ser assim, todos falarem de Paula Rego como se fala de futebol: Não é preciso especialização nem grande conhecimento acumulado. Fala-se de futebol entre amigos e desconhecidos com a espontaneidade de uma criança. A ignorância ou o desacordo não são levados a mal mesmo quando há paixão na exposição dos pontos de vista.

Assim deveria ser falar de Paula Rego.

Contactei com a arte de Paula Rego pelos meus 26 anos por volta de 1988 na Fundação Calouste Gulbenkian. 

O poder narrativo do seu trabalho era tal que fiquei com a ideia de que mil palavras seriam pouco para a explicação de cada imagem. A afirmação que emanava da preponderante presença feminina era intensa. A tenacidade e a persistência das mulheres identificavam-nas como seres fortíssimos capazes dos maiores sacrifícios para manter o poder da frágil condição masculina. 

A geração de Paula Rego foi ainda caracterizada por uma relação de subalternidade relativamente aos homens e ao poder patriarcal instalado na sociedade. A exclusão dos privilégios e do protagonismo destinado tradicionalmente aos homens, deixaram as mulheres numa posição de desvantagem na luta pela igualdade de direitos. Em desvantagem, mas não desarmadas o sacrifício do seu potencial adquire formas de revolta e insubmissão que vão desde o trato entre senhor e vassalo, entre dono e escravo até à crença no poder mágico do feitiço e da providência.

O trabalho de Paula Rego surpreendia-me já nessa altura pela dedicação e morosidade que exigia, as pinturas cortadas, recortadas e coladas, as gravuras em metal com camadas de água forte e aquatinta, mais tarde as enormes figuras modeladas a riscos de pastel em papeis gigantes. Percebi o trabalho, mas também a meditação. A capacidade que o espírito tem de transformar uma tarefa repetitiva num gesto libertador, permitindo um estado de consciência alterado em que se chega ao destino sem dar pelas dificuldades do percurso, em que se pode prosseguir sem dar pelo cansaço ou pela fome.

A obra de Paula Rego é também um relato mordaz da hipocrisia. A denúncia da segregação social, da perversão moral e nesse sentido uma obra que retrata a desilusão. A desilusão não é a ingenuidade de quem se deixa iludir, mas sim uma forma de estoicismo perante quem quer iludir. Ainda aqui a desilusão é uma forma de poder feminino. Mesmo quando vestido de cores garridas e momentos festivos revela a tristeza, a tristeza e o desapontamento de quem preferiu a tolerância. 

Paula Rego é da idade da minha mãe.

1 comentário:

Justine disse...

Excelente texto, com o qual concordo integralmente